Fone: 11 5055-6494  |  11 5055-2438
Whatsapp da Sociedade
Associe-se à
SBRH
Renove sua Anuidade
Área do
Associado

Comitê: Psicologia

Parentalidade – Os (des)caminhos do desejo.

Share on whatsapp
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on email

Débora Marcondes Farinati
“Uma única alma governa os dois corpos…não raro, as coisas desejadas pela mãe aparecem impressas nos membros da criança que a mãe carrega quando tem o desejo.”
Leonardo da Vinci, Quaderni1

 

Os fundamentos do desejo de parentalidade há muito deixaram de ser sustentados na premissa de que é o corpo biológico que incita o sujeito humano a ser pai e mãe. Autores como Philippe Ariès 2 e Elisabeth Badinter 3 nas obras clássicas: História Social da Criança e da Família e Um Amor Conquistado- o mito do amor materno demonstram que a formação da família é tributária da subjetividade e da cultura humana e, portanto, não pode ser compreendida como fato de natureza, mas sim, como fenômeno humano. 4

Uma das principais contribuições da teoria freudiana diz respeito ao lugar e à função que assinala o desejo tanto na organização de nosso mundo como quanto do campo social que nos rodeia5. O desejo possui sempre um caráter enigmático, posto que inconsciente, e sua formação é sempre sobredeterminada. É resultado dos acontecimentos da história real e/ou imaginada de quem o porta e tem sua origem nos encontros inaugurais do bebê com seus objetos primordiais e nas vicissitudes da sexualidade infantil.

Como bem destaca Christian Dunker 6, esses primeiros encontros têm tamanha força que nos atraem para sua repetição, e por isso, “amar é repetir amores anteriores e começar outros inéditos”. A força de que nos fala Dunker aponta para uma economia libidinal, pulsional e que na constituição da parentalidade possui especificidades.

O desejo de ter um filho seria então construído desde a mais tenra idade relacionando-se intrinsecamente com o terreno da sexualidade, na imbricação entre os campos intrapsíquico e intersubjetivo. Os laços parentais constituem a base sobre a qual se constroem a subjetivação e a vida psíquica da criança, e esta última está relacionada com a maneira como os pais lançam seus cuidados ao filho. Segundo Houzel, para ser genitor (a) não basta ser designado como pai ou mãe para preencher todas as condições necessárias à parentalidade, faz-se necessário tornarem-se pais 7.

A transmissão de geração a geração, num mais além da questão gênica, sustenta-se no processo de narrar, ou seja, na capacidade humana como ser de linguagem de transmitir sua história através do que conta, narra. O que somos e o que seremos é consubstancial da possibilidade que temos de narrar. Desta forma, como bem postula Celso Gutfreind, narrar é indispensável ao processo de parentalidade. Narrar dá sentido à história dos pais e, desta forma, abre espaço para que a história do filho se construa. Se o pai e a mãe se apropriaram da autoria do filho é porque já contaram suas próprias histórias de filhos de mães e pais 8.

Embora na atualidade os caminhos para uma vida satisfatória não passem necessariamente pela constituição de uma família com filhos, a maioria dos homens e mulheres refere sofrer uma significativa cobrança social neste sentido. Ter filhos segue sendo um atributo de valor e de poder, e, por conseguinte não tê-los, marca de desvalimento e incompetência, o que acarreta para homens e mulheres com dificuldades para conceber, ansiedade, tristeza e significativos sentimentos de inadequação.

Quando um casal coloca em marcha seu projeto de construção familiar uma complexa trama desejante e identitária, carregada de significações inconscientes e de intensas expectativas está em jogo. No ato de iniciar as tentativas para engravidar uma série de condições precisaram ser processadas psiquicamente para que o espaço para o futuro filho possa ser criado. Quando a cena plena de expectativas dá lugar a sucessivas frustrações advindas da não concepção, o que antes era símbolo de potência criadora passa a ser sentido como uma ameaça à própria identidade feminina, masculina e de casal. O que antes povoava os sonhos como expressão de satisfação agora passa a pertencer ao pesadelo da infertilidade e das terapêuticas empreendidas visando sua solução.

Ante a expectativa de procriar o corpo passa a portar múltiplas significações. Marca o lugar do encontro amoroso na busca do prazer ligado ao erotismo e junto a este a possibilidade de realização do desejo de procriação. Unem-se o prazer da psicosexualidade e prazer de procriar 9. A experiência da infertilidade, ao contrário, interroga este corpo e por vezes provoca uma cisão entre o corpo erógeno e corpo procriador. E é neste contexto que o corpo, para muitos e com frequência, destituído de subjetividade é entregue ao escrutínio da medicina.

É por ser o desejo de filho resultado de uma complexa trama, a qual adquire novos contornos no cenário das novas tecnologias reprodutivas, que necessitamos compreender a infertilidade e suas terapêuticas em suas diferentes dimensões: médica, psíquica, conjugal, social e ética a fim de que possamos oferecer ao sujeito que nos procura uma escuta e um atendimento que leve em consideração todos os fatores que fazem parte desta difícil e desafiadora vivência.

Para tanto, fazer trabalhar nossos referencias teóricos é fundamental. Abrir-se ao novo com um espírito, ao mesmo tempo livre e crítico, é condição sine qua non para quem deseja adentrar as problemáticas psíquicas e relacionais que ensejam a Reprodução Humana e para que os fenômenos do sujeito contemporâneo possam ser compreendidos. A fim de que o façamos precisamos combater os reducionismos, e esta tarefa concerne a diferentes disciplinas.

Um enlace fértil entre as diferentes áreas do conhecimento, salvaguardando as especificidades epistemológicas de seu campo, em nosso entender é o que possibilitará compreendermos a complexidade do sujeito contemporâneo.

1 – Da Vinci L.Quaderni d’anatomia, I-VI: Fogli della Royal Library di Windsor, pubblicati da C.L. Vangensten, A. Fonahn, H. Hopstock. Christiana: J. Dybwad, 1911-1916. (1452-1519)
2 – Ariès, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora AS, 1973.
3- Badinter, E. Um amor Conquistado. O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
4- Dornelles L., Farinati D., Lopes, H. Aspectos emocionais da Vivência Masculina da Infertilidade. In: Straub, K., Melamed, Rose (org) Temas Contemporâneos de Psicologia em Reprodução Humana Assistida. São Paulo: Livrus; 2015
5- Aulagnier, P. Que deseo, de que hijo? Revista Psicoanálisis com niños y adolescentes, v.3, p. 45-46, 1992.
6 – Dunker, C. Economia libidinal da parentalidade. In: Teperman, D., Garrafa, T., Iaconelli, V. (org.) Parentalidade. Belo Horizonte: Autêntica,2020.
7 – Houzel, D. As implicações da parentalidade. In: Silva, M C (org) Solis- Ponton, L (dir) Ser Pai, Ser Mãe Parentalidade: um desafio para o terceiro milênio. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
8- Gutfreind, C. Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade. Rio de Janeiro: Difel,2010.
9- Cincunegui, S., Kleiner, Y., Woscoboinik, P.R. La infertilidade em la pareja. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2004.

DOWNLOAD DO PDF AQUI