Débora Marcondes Farinati
“Uma única alma governa os dois corpos…não raro, as coisas desejadas pela mãe aparecem impressas nos membros da criança que a mãe carrega quando tem o desejo.”
Leonardo da Vinci, Quaderni1
Os fundamentos do desejo de parentalidade há muito deixaram de ser sustentados na premissa de que é o corpo biológico que incita o sujeito humano a ser pai e mãe. Autores como Philippe Ariès 2 e Elisabeth Badinter 3 nas obras clássicas: História Social da Criança e da Família e Um Amor Conquistado- o mito do amor materno demonstram que a formação da família é tributária da subjetividade e da cultura humana e, portanto, não pode ser compreendida como fato de natureza, mas sim, como fenômeno humano. 4
Uma das principais contribuições da teoria freudiana diz respeito ao lugar e à função que assinala o desejo tanto na organização de nosso mundo como quanto do campo social que nos rodeia5. O desejo possui sempre um caráter enigmático, posto que inconsciente, e sua formação é sempre sobredeterminada. É resultado dos acontecimentos da história real e/ou imaginada de quem o porta e tem sua origem nos encontros inaugurais do bebê com seus objetos primordiais e nas vicissitudes da sexualidade infantil.
Como bem destaca Christian Dunker 6, esses primeiros encontros têm tamanha força que nos atraem para sua repetição, e por isso, “amar é repetir amores anteriores e começar outros inéditos”. A força de que nos fala Dunker aponta para uma economia libidinal, pulsional e que na constituição da parentalidade possui especificidades.
O desejo de ter um filho seria então construído desde a mais tenra idade relacionando-se intrinsecamente com o terreno da sexualidade, na imbricação entre os campos intrapsíquico e intersubjetivo. Os laços parentais constituem a base sobre a qual se constroem a subjetivação e a vida psíquica da criança, e esta última está relacionada com a maneira como os pais lançam seus cuidados ao filho. Segundo Houzel, para ser genitor (a) não basta ser designado como pai ou mãe para preencher todas as condições necessárias à parentalidade, faz-se necessário tornarem-se pais 7.
A transmissão de geração a geração, num mais além da questão gênica, sustenta-se no processo de narrar, ou seja, na capacidade humana como ser de linguagem de transmitir sua história através do que conta, narra. O que somos e o que seremos é consubstancial da possibilidade que temos de narrar. Desta forma, como bem postula Celso Gutfreind, narrar é indispensável ao processo de parentalidade. Narrar dá sentido à história dos pais e, desta forma, abre espaço para que a história do filho se construa. Se o pai e a mãe se apropriaram da autoria do filho é porque já contaram suas próprias histórias de filhos de mães e pais 8.
Embora na atualidade os caminhos para uma vida satisfatória não passem necessariamente pela constituição de uma família com filhos, a maioria dos homens e mulheres refere sofrer uma significativa cobrança social neste sentido. Ter filhos segue sendo um atributo de valor e de poder, e, por conseguinte não tê-los, marca de desvalimento e incompetência, o que acarreta para homens e mulheres com dificuldades para conceber, ansiedade, tristeza e significativos sentimentos de inadequação.
Quando um casal coloca em marcha seu projeto de construção familiar uma complexa trama desejante e identitária, carregada de significações inconscientes e de intensas expectativas está em jogo. No ato de iniciar as tentativas para engravidar uma série de condições precisaram ser processadas psiquicamente para que o espaço para o futuro filho possa ser criado. Quando a cena plena de expectativas dá lugar a sucessivas frustrações advindas da não concepção, o que antes era símbolo de potência criadora passa a ser sentido como uma ameaça à própria identidade feminina, masculina e de casal. O que antes povoava os sonhos como expressão de satisfação agora passa a pertencer ao pesadelo da infertilidade e das terapêuticas empreendidas visando sua solução.
Ante a expectativa de procriar o corpo passa a portar múltiplas significações. Marca o lugar do encontro amoroso na busca do prazer ligado ao erotismo e junto a este a possibilidade de realização do desejo de procriação. Unem-se o prazer da psicosexualidade e prazer de procriar 9. A experiência da infertilidade, ao contrário, interroga este corpo e por vezes provoca uma cisão entre o corpo erógeno e corpo procriador. E é neste contexto que o corpo, para muitos e com frequência, destituído de subjetividade é entregue ao escrutínio da medicina.
É por ser o desejo de filho resultado de uma complexa trama, a qual adquire novos contornos no cenário das novas tecnologias reprodutivas, que necessitamos compreender a infertilidade e suas terapêuticas em suas diferentes dimensões: médica, psíquica, conjugal, social e ética a fim de que possamos oferecer ao sujeito que nos procura uma escuta e um atendimento que leve em consideração todos os fatores que fazem parte desta difícil e desafiadora vivência.
Para tanto, fazer trabalhar nossos referencias teóricos é fundamental. Abrir-se ao novo com um espírito, ao mesmo tempo livre e crítico, é condição sine qua non para quem deseja adentrar as problemáticas psíquicas e relacionais que ensejam a Reprodução Humana e para que os fenômenos do sujeito contemporâneo possam ser compreendidos. A fim de que o façamos precisamos combater os reducionismos, e esta tarefa concerne a diferentes disciplinas.
Um enlace fértil entre as diferentes áreas do conhecimento, salvaguardando as especificidades epistemológicas de seu campo, em nosso entender é o que possibilitará compreendermos a complexidade do sujeito contemporâneo.
1 – Da Vinci L.Quaderni d’anatomia, I-VI: Fogli della Royal Library di Windsor, pubblicati da C.L. Vangensten, A. Fonahn, H. Hopstock. Christiana: J. Dybwad, 1911-1916. (1452-1519)
2 – Ariès, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora AS, 1973.
3- Badinter, E. Um amor Conquistado. O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
4- Dornelles L., Farinati D., Lopes, H. Aspectos emocionais da Vivência Masculina da Infertilidade. In: Straub, K., Melamed, Rose (org) Temas Contemporâneos de Psicologia em Reprodução Humana Assistida. São Paulo: Livrus; 2015
5- Aulagnier, P. Que deseo, de que hijo? Revista Psicoanálisis com niños y adolescentes, v.3, p. 45-46, 1992.
6 – Dunker, C. Economia libidinal da parentalidade. In: Teperman, D., Garrafa, T., Iaconelli, V. (org.) Parentalidade. Belo Horizonte: Autêntica,2020.
7 – Houzel, D. As implicações da parentalidade. In: Silva, M C (org) Solis- Ponton, L (dir) Ser Pai, Ser Mãe Parentalidade: um desafio para o terceiro milênio. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
8- Gutfreind, C. Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade. Rio de Janeiro: Difel,2010.
9- Cincunegui, S., Kleiner, Y., Woscoboinik, P.R. La infertilidade em la pareja. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2004.