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Comitê: Embriologia

As clínicas de reprodução assistida estão preparadas para atender pacientes LGBTQIA+?

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Por Letícia Arruda e Enzo Possebon

Embora o mês de junho, que celebra o orgulho LGBTQIA+ tenha chegado ao fim, é mais do que necessário manter em discussão o que estes 30 dias trazem à tona, também, durante os outros 11 meses do ano. Portanto, cabe salientar a importância de rever o funcionamento das clínicas de reprodução assistida para de fato torná-las inclusivas à esta parte da população. Por se tratarem de processos complexos, que vão desde a identificação de pacientes e amostras, perpassam por termos de consentimento, até a abordagem médica, é extremamente necessário que a equipe conheça de fato as necessidades destes pacientes. Caso contrário, eles poderão ser privados de um atendimento de qualidade e acabar, inclusive, sendo discriminados, em razão do eventual despreparo dos profissionais para lidar com esta comunidade.

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As siglas LGBTQIA+ englobam desde grupos atrelados à multiplicidade de orientação sexual (lésbicas, gays, bissexuais, assexuais), bem como à diversidade de gênero (a exemplo das pessoas transexuais, travestis, intersexuais, não-binárias), além de demais sujeitos posicionados em dissidência para com as normatividades heterossexuais, cisgêneras e endosexuais que regem a sociedade brasileira (1). Assim, é importante enfatizar que os indivíduos desse grupo são heterogêneos e apresentam necessidades distintas e singulares ao que compete aos serviços de saúde. Segundo Nascimento, et al. (2020) “construir direitos sexuais e reprodutivos a partir do ponto de vista hegemônico de diretos humanos – universalizante e reiteradora de desigualdades históricas e estruturais implicadas na lógica do biopoder e da biopolítica – gerará uma legitimidade rasa e excludente, pois, devido à sua natureza e à forma como projeta em seus discursos normativos o sujeito desses direitos, não levará em consideração a diversidade de possibilidades de vivência dos gêneros presente na sociedade e a diversidade de direitos demandados por tais grupos”.

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Historicamente, os pacientes que se desviam da população heterossexual e cisgênero têm tido o acesso negado às técnicas de reprodução assistida (RA) (2), em especial Indivíduos transgêneros, que enfrentam discriminação em todos os aspectos da sociedade, incluindo no ambiente de saúde (4). Recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou que pacientes homoafetivos e transgêneros podem utilizar as técnicas de reprodução assistida (3) embora haja pouco material informativo para capacitar as clínicas para atender esse público.

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Um pequeno estudo analisou as experiências de indivíduos trans que procuraram ou utilizaram serviços de reprodução assistida em Ontário entre 2007 e 2010, e apenas dois dos nove indivíduos entrevistados relataram experiências positivas (5). Alguns entrevistados relataram que sofreram discriminação em relação a sua identidade de gênero, mas a maioria dos pacientes relatou que tiveram problemas de comunicação e falta de entendimento com a equipe. Abaixo, discutiremos alguns pontos importantes que devem ser considerados pelos centros que visam atender de forma inclusiva esses pacientes.

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1. Impactos cis-normativos e heteronormativos

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A cis-heteronormatividade, ou seja, considerar como normal somente as relações entre homens e mulheres que se identificam com o gênero o qual lhes fora atribuído ao nascer, é normalmente observada nos serviços de saúde e deve ser devidamente debatida. Não há um desvio da normalidade nos pacientes que não se enquadram como cisgênero e heterosexuais, devendo-se ser respeitada a individualidade de cada paciente, despatologizando de vez por todas a identidade de gênero e a orientação sexual desta população. Da mesma forma, o sexo biológico não pode ser confundido com a identidade de gênero pela equipe, evitando erros de abordagem terapêutica e discriminação. A orientação sexual deve ser desvinculada do gênero, ou seja, não se deve assumir que toda mulher se relaciona sexualmente com homens e vice-versa. Desta forma, a equipe precisa entender essas diferenças essenciais para tratar estas questões com naturalidade, proporcionando um ambiente seguro para que o paciente possa expor as suas particularidades reprodutivas.

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2. Treinamento da equipe

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O treinamento da equipe para atender esta população é um dos pontos mais importantes para tornar o serviço de saúde acolhedor a esses pacientes. Médicos, seguranças, recepcionistas, embriologistas e enfermeiros devem se familiarizar com termos e vivências que refletem os desafios psicológicos e fisiológicos desses indivíduos, para construir um ambiente de confiança e aceitação com seus pacientes, onde os tópicos de discussão podem ser abertamente discutidos.

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Embora pessoas de qualquer sexo / gênero possam desejar ter filhos, os serviços de RA tendem a presumir que aqueles que doam ou congelam sêmen são homens, enquanto os que congelam embriões ou querem engravidar são mulheres. Essas suposições podem tornar o acesso a clínicas de fertilidade um desafio para pessoas trans ou que não se enquadram dentro dessas classificações. Além disso, deve-se familiarizar aos e pelos profissionais, dentro das clínicas, termos como “homem com útero” e “mulher com pênis”, para designar de forma correta pacientes transgêneros que serão submetidos à procedimentos médicos em que a informação do sexo biológico é importante.

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A utilização de uma linguagem que corresponda à identidade de gênero e sexualidade dos pacientes é de extrema importância, e a forma que cada indivíduo deseja ser chamado pode ser sempre questionada ao paciente, em um ambiente livre de julgamentos. Além disso, a equipe deve evitar suposições sobre os papéis dos pais com base em processos biológicos. Um homem trans, por exemplo, pode se identificar como pai enquanto gesta um filho e/ou amamenta. Uma mulher trans pode se identificar como a mãe de uma criança produzida com seu sêmen. Pessoas que se identificam como não-binárias, podem preferir termos que não reflitam papéis parentais de gênero.

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Muitos médicos relatam que se sentem inadequadamente preparados para aconselhar os pacientes devido à falta de publicações acadêmicas sobre as melhores práticas e taxas de sucesso das técnicas de reprodução (6). De fato, ainda há poucos estudos realizados especificamente nessa população e em especial na população trans, o que torna ainda mais difícil essa abordagem. Novas pesquisas devem ser realizadas para respaldar esses tratamentos, mas a escuta atenta dos desejos reprodutivos e de parentalidade é sem dúvida o que mais poderá auxiliar esses pacientes dentro dos centros de reprodução.

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3. Materiais informativos

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Existe pouco material informativo sobre as possibilidades dentro das técnicas de reprodução para a população LGBTQIA+, dificultando o acesso desses indivíduos aos tratamentos. Essa população muitas vezes não tem o apoio de familiares e buscam referências capazes de informá-los sobre as opções reprodutivas que estão disponíveis para a sua realidade. Portanto, os profissionais que desejam atender esses pacientes e assim, garantir a sua autonomia reprodutiva, podem incluir esse tipo de conteúdo em mídias sociais, sites e publicações.

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4. Adequação de documentos e identificação de amostras

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É comum pacientes que relatam que os formulários e documentos fornecidos por serviços de saúde não permitiam a expressão da sua identidade específica e se sentiram incompreendidos por profissionais de saúde que não entenderam suas situações e necessidades únicas. Normalmente, as clínicas de reprodução possuem sistemas de cadastro de informações dos pacientes que utilizam um sistema binário de gênero: homem/masculino e feminino/mulher, que não contemplam outras opções para os indivíduos que não se identificam desta forma, como é o caso dos indivíduos não-binários. Assim, a inclusão de campos que englobem informações como: sexo biológico, identidade de gênero, nome social e civil, permitem uma melhor identificação do paciente e evita uma exposição constrangedora, além de facilitar a comunicação e o conhecimento entre a equipe e o paciente.

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O nome social, positivado no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto 8.727 de 2016, trata-se de uma carteira de identificação, na qual consta o nome pelo qual o indivíduo transgênero é conhecido, sendo comumente utilizado por aqueles que ainda não alteraram ou não quiseram alterar de forma definitiva junto ao Registro Civil das Pessoas Naturais. Embora a inclusão do nome social no fluxo de identificação dos pacientes possa parecer relativamente simples, há uma série de complicações potenciais. Por exemplo, pode haver regulamentos para certas práticas hospitalares que exigem o uso de um nome legal completo e onde um nome preferencial não é um identificador aceitável, ou quando o sistema de cadastro não prevê essa inclusão. Entretanto, cada serviço deve avaliar os riscos envolvidos na adoção do nome social em cada setor e, assim, adotar as medidas cabíveis para incluir esse direito nas suas práticas, principalmente aqueles profissionais que estão em contato direto com o paciente.

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Os laboratórios de embriologia e andrologia utilizam um sistema de identificação de amostras biológicas próprio (sêmen, óvulos e embriões), alguns deles baseados em códigos de barras, iniciais dos nomes ou os próprios nomes dos pacientes. Para os pacientes transgênero, cada clínica deverá rever como adequar essa identificação, registrando possíveis alterações de nome e demais particularidades nos prontuários médicos, a fim de evitar que os pacientes sejam expostos a constrangimentos futuros com o seu nome civil, no caso daqueles não retificados em cartório.

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Os termos de consentimento livre e esclarecidos (TCLE) para os procedimentos de reprodução devem abordar especificidades sobre essa população quando houver, esclarecendo quando ainda não se tem conhecimento sobre as tecnologias específicas para determinada população, como se observa em casos de preservação da fertilidade em pacientes trans que já iniciaram a terapia hormonal por tempo prolongado. Além disso, é preciso adequar campos de preenchimento que são baseados em construções culturais binárias e heteronormativas de gênero e família, como é o caso de campos como “marido”, no qual presume-se que todo o casal será formado por uma mulher e seu marido.

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Os planos de saúde acabam dificultando o acesso de pacientes trans ou não-binários a consultas médicas e procedimentos por não aprovarem determinadas especialidades de acordo com o gênero do paciente. Eles não preveem a diferenciação entre identidade de gênero e sexo biológico, além de não respeitarem direito ao uso do nome social nas identificações dos pacientes. Homens trans, por exemplo, não conseguem aprovação para consultas com ginecologistas sem que se identifiquem com o sexo biológico (mulher) ou que exijam judicialmente esse direito, assim como se deparam as mulheres trans em consultas com urologistas. Ao submeter esses pacientes à necessidade de exposição sobre sua identidade de gênero, processos administrativos e/ou judiciais para conseguirem um direito básico de acesso à saúde, eles acabam indo menos ao médico. Este fato culmina com um acesso precário a exames fundamentais para a saúde destes indivíduos, que mais uma vez, são excluídos por um sistema que inviabiliza a sua existência.

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5. Estrutura física

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Os ambientes físicos nas clínicas de reprodução devem ser pensados para incluir as diversidades de identidades de gênero, evitando constranger pacientes que não se identificam com a binareidade de gênero ou com seu sexo biológico. Nesse ponto estaria a adequação de banheiros sem distinção entre homens/mulheres e também a renomeação de setores que eventualmente podem estar ligados à termos como “saúde da mulher”, o que seria excludente para homens transexuais.

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Desta forma, fica evidente que são necessárias mudanças estruturais e culturais para tornar um centro de reprodução humana acolhedor à população LGBTQI. São necessários mais estudos que avaliem as técnicas de reprodução para esta população, o desenvolvimento de materiais informativos, além da promoção de educação continuada para que toda a equipe esteja atenta às necessidades específicas desses pacientes.

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1. NASCIMENTO, Rosane Bezerra de; CARVALHO, José Lucas Santos; SILVA, Danilo Conceição Pereira. Autonomia reprodutiva da população trans: Discursos de Direitos Humanos, cisnormatividade e biopolítica. Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: link para o artigo. Acesso em: xxxx. DOI: 10.1590/2179- 8966/2020/47944

2. DE Wert G, Dondorp W, Shenfield F, et al. ESHRE Task force on Ethics and Law 23: medically assisteted reproduction in singles, lesbian and gay couples, and transsexual people. Hum Reprod 2014; 29:1859-65.

3. RESOLUÇÃO CFM Nº 2.294, DE 27 DE MAIO DE 2021

4. Rodriguez A, Agardh A, Asamoah BO. Self-reported discrimination in health-care settings based on recognizability as transgender: a cross-sectional study among transgender U.S. citizens. Arch Sex Behav 2018;47:973-85.
5. James-Abra S, Tarasoff LA, Green D, et al. Trans people’s experiences with assisted reproduction services: a qualitative study. Hum Reprod 2015;30:1365-74.

6. Chen D, Kolbuck VD, Sutter ME, et al. Knowledge, Practice Behaviors, and Perceived Barriers to Fertility Care Among Providers of Transgender Healthcare. J Adolesc Health 2019;64:226-34.