Helena Prado Lopes
As famílias formadas pela doação de material genético fazem parte das diversas constelações familiares existentes na realidade contemporânea. Nesse contexto, uma das principais interrogações do casal que realizou o tratamento com ovodoação e/ou doação de sêmen refere-se ao ato de revelar ou não a origem ao filho, aos familiares e às pessoas do entorno.
Na década de 90, a American Society for Reproductive Medicine aconselhava aos pais de crianças que haviam nascido de gametas doados a não revelarem essa informação, pois havia a crença de que o ato comunicativo poderia ser prejudicial para o vínculo parental e, até mesmo, para a criança (Maier et al., 2017).
No entanto, o estudo de famílias implicadas e depoimentos de adultos nascidos nessas condições levaram a uma revisão crítica dessa posição. Contrariando à crença, diferentes estudos passaram a sustentar que, muitas vezes, as dificuldades surgidas nas famílias originavam-se nas crises advindas da revelação do segredo mantido até então ou, inclusive, aos efeitos de um ocultamento ainda vigente (GOLOMBOK, 2015).
Há, também, certo conflito entre o direito da criança de conhecer as suas origens e o direito à privacidade do casal parental, assim como o da confidencialidade do doador dos gametas. Na atualidade, houve uma importante mudança ao considerar não apenas os direitos dos pais à privacidade e dos doadores ao anonimato; mas também os direitos da criança, que passou a ser entendida como um indivíduo de direitos. Essa valorização dos direitos humanos pode, portanto, interferir na esfera privada familiar tanto dos pais como dos doadores (GOLOMBOK, 2015).
Estudos de Daniels et al., (2009) recomendam aos profissionais que trabalham com a reprodução assistida que os benefícios da revelação sejam sinalizados aos pais. Essa tem sido, justamente, uma corrente que surge com força, pois entende-se que, no futuro, a omissão possa gerar desconfiança e deteriorar a relação de pais e filhos. Além disso, ao não oferecer essa informação, há certa ideia de perda de conhecimento da identidade por parte da criança.
De fato, numerosos estudos sugerem manter uma abertura com a criança e evidenciam que manter o segredo e não falar sobre o tema pode causar um importante dano psicológico. Há evidências, inclusive, que em uma relação afetiva é mais benéfico não haver segredos entre pais e filhos, pois isso pode gerar um distanciamento na relação (BACCINO, 2010).
Em um estudo realizado por PAPP (2002), demonstrou-se que os casais que não pretendiam contar para o filho a sua origem acreditavam que, dessa maneira, estariam protegendo-o de um sofrimento desnecessário. Nesse mesmo estudo, PAPP (2002) aponta que contar ou não contar ao filho sobre a doação de gameta é uma das decisões mais importantes que o casal deve tomar e, justamente por isso, não é raro que eles tenham posicionamentos diferentes sobre essa atitude.
Segundo essa autora, as duas principais razões para a revelação são o fato de outras pessoas já o saberem e o medo de que essa informação seja transmitida à criança por outras fontes. Além do mais, outros motivos são: a concepção de que segredos familiares são prejudiciais; o reconhecimento de que a criança tem o direito de conhecer suas origens; e o desejo de ser honesto com o filho (PAPP, 2002).
Não se sabe, ainda, se os filhos nascidos através da doação de gametas seguirão os mesmos passos de filhos adotivos no que diz respeito à busca pelos pais genéticos, mas, provavelmente, não reagirão de forma diferente com respeito a ter o desejo de conhecer o doador/a. A literatura existente sobre filhos adotivos mostra que, quando eles descobrem a verdade sendo já mais velhos, sentem-se, muitas vezes, traídos pelos pais adotivos e tendem a vê-los com desconfiança (PAPP, 2002).
De acordo com a Resolução CFM Nº 2.294, de 27 de maio de 2021, os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, exceto na doação de gametas para parentesco de até 4º (quarto) grau de um dos receptores (primeiro grau – pais/filhos; segundo grau – avós/irmãos; terceiro grau – tios/sobrinhos; quarto grau – primos).
A partir dessa Resolução, a doação de gametas intrafamiliar está permitida desde que não incorra em consanguinidade, o que significa que, apesar de alguns benefícios, essas experiências também podem ser emocionalmente desafiadoras e gerar tensão até mesmo nos laços familiares mais fortes.
Devido a isso, os membros da família devem ser informados sobre a forma como a doação de gametas pode afetar seus relacionamentos e o modo como podem se preparar e trabalhar para preservar seus laços, garantindo que tomem decisões informadas e livres de pressão.
Destaca-se, ainda, que algumas questões devem ser consideradas na doação de gametas intrafamiliar:
- como esse acordo pode afetar o relacionamento entre todas as partes?
- como outros membros da família podem reagir a essa decisão?
- quais são as expectativas de todos os envolvidos no tratamento?
- quais são os sentimentos de todos os participantes sobre: se, quando e como revelar a verdade à criança nascida através desse processo?
- caso o doador intrafamiliar já tenha filhos, eles serão informados que o pai e/ou a mãe doaram seus gametas para um familiar?
- todos membros da família serão informados sobre a doação de gametas ou apenas alguns saberão?
- no caso de optar por informar apenas algumas pessoas da família, qual será o critério para estabelecer quem vai conhecer a origem da criança?
- quais são as expectativas de todos sobre o futuro papel do doador na vida da criança, ou seja, o doador deseja ter um maior ou menor envolvimento na vida dela?
A situação torna-se mais complexa se reconhecermos que podem surgir questões em relação ao papel e à autonomia dos pais e possíveis confusões de papeis com consequências adversas para as pessoas envolvidas, incluindo a criança que vai nascer.
Referências
Baccino, Giuliana ((2010) “El secreto de padres receptores de gametos hacia sus hijos ¿Hemos pensado en el bienestar del niño?” en Manual de Intervención Psicológica, Edikamed, pp. 131-138.
Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 2.294/2021. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2168>. Acesso em 05/10/2021.
Daniels, Ken; Gillett, Wayne; Grace, Victoria (2009) “Parental information sharing with donor insemination conceived offspring a follow-up study” en Human Reproduction vol. 24, nº 5, pp. 1099–1105.
Papp, P. (2002) Casais em perigo: novas diretrizes para terapeutas. Artmed Editora. Porto Alegre.