Autoras: Cássia Cançado Avelar, Helena Prado Lopes, Kátia Maria Straube. Rose Marie M. Melamed.
Comitê de Psicologia SBRH: Lia Mara Dornelles, Valéria Teixeira, Arielle Nascimento, Cássia Avelar, Débora Farinati, Flávia Giacon, Helena Montagnini, Helena Prado, Juliana Roberto dos Santos, Kátia Straube, Luciana Leis, Rose Marie Melamed, Simone Perelson, Vanya Dossi.
Highlight
O avanço da medicina reprodutiva, o congelamento e armazenamento de espermatozóides, embriões, óvulos e tecidos ovarianos tornou viável ao paciente a possibilidade de ter um filho biológico gerado com o gameta do cônjuge falecido1.
Introdução
Para o ser humano, o ato de morrer, além de um fenômeno biológico e natural, contém intrinsecamente uma dimensão simbólica: a morte sempre representou o fim e a impossibilidade de procriação. Todavia, a partir da intervenção humana no desenvolvimento da biotecnologia, essa premissa vem se modificando, pelas possibilidades da reprodução assistida post mortem, que provocam diversos questionamentos legais, morais, éticos, religiosos e políticos, mundialmente debatidos, suscitando repercussões tanto em nível individual quanto social, conforme a cultura, os valores, o contexto socio-político-econômico e religioso em que acontece.
No Brasil, segundo a resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM)2, “é permitida a reprodução assistida post mortem, desde que haja autorização específica para o uso do material biológico criopreservado em vida, de acordo com a legislação vigente”.
Tal permissão representa esperança para muitos na realização do direito de procriar, mas traz também, novas questões relacionadas à filiação e a modelos familiares diversos, configurando a intersecção entre medicina, bioética, psicologia e direito, e enfatizando o consagrado princípio da autonomia das pessoas. Lourenço3 (2022) lembra que o Relatório Belmont, de 1978, primeiro documento dos estudos de bioética, denominou a autonomia como princípio de respeito às pessoas, estabelecendo que maturidade, capacidade cognitiva para compreensão do que está sendo tratado e um ambiente adequado – sem situações de estresse, emergência ou urgência – são condicionantes ao pleno exercício da autonomia.
Moreira4 (2012) acrescenta que o tema envolve valores acerca da parentalidade, família, da vida e da morte, e ressalta que é importante compreender os significados atribuídos pelo paciente à sua decisão sobre o que fazer com o material genético criopreservado do cônjuge falecido e analisar a relação desta decisão com o processo de luto.
Tal condição alcança os indivíduos que têm necessidade de tratamento oncológico e que possuem riscos de infertilidade, de modo que podem armazenar seu material genético para uso futuro5. Envolve ainda, pessoas viúvas que queiram perpetuar a presença e a semelhança do/a parceiro/a falecido/a, em uma presumida prole. Novas expressões de subjetividade humana pertinentes às biotecnologias contemporâneas vêm progressivamente ocupando espaço, que vai além da vida4.
Straube e Dornelles6 (2015), citando Pennings, referem que os casos de reprodução póstuma podem ser agrupados em três categorias: a) a fertilização in vitro e a gravidez ocorrem depois da morte de um dos parceiros; b) a fertilização in vitro e a criopreservação de embriões ocorrem antes da morte de um dos parceiros; c) a fertilização in vitro e a gravidez ocorrem antes da morte de um dos parceiros, mas o nascimento do bebê ocorre após a sua morte. Outra circunstância possível é a de uma jovem solteira que criopreserva seus óvulos para utilizá-los posteriormente e, em decorrência de seu falecimento, a família solicita o material genético para realizar o suposto desejo da filha de constituir um núcleo familiar.
Aspectos Psicológicos
Farinati e Montagnini7 (2018) enfatizam que o congelamento de óvulos, sêmen e embrião pressupõe o desejo de ter um filho, mas há que se questionar se este desejo se sustenta sem a vida. Pontuam que o tipo de relação estabelecida com a pessoa que morreu, a circunstância da sua morte e os recursos do enlutado para lidar com o enfrentamento da situação, são alguns dos fatores que favorecem ou dificultam todo o processo.
Há que se considerar que a dor da perda de um ente querido e a interrupção de projetos idealizados a dois, inclusive o projeto parental, pode levar à busca pela sua realização por meio de tratamento reprodutivo post mortem, oferecido pela reprodução humana assistida. Porém, é importante salientar que concomitante à dor da perda, o desejo insatisfeito de ter o filho com o cônjuge em vida pode motivar a busca pelo tratamento post mortem para preenchimento do vazio que se instalou ou pela dificuldade de aceitação da morte. Assim, se enfatiza a complexidade da questão e a importância da cautela e da ação da equipe multidisciplinar no acompanhamento do processo de luto e decisão do cônjuge sobrevivente. Compreender os significados atribuídos pelo mesmo à sua decisão sobre o que fazer com o material genético do cônjuge falecido/a e analisar a relação desta decisão com o processo de luto é tarefa essencial neste processo.
Os aspectos psicológicos que permeiam a tomada de decisão do enlutado pela reprodução assistida post mortem devem levar em consideração as implicações subjetivas pertinentes a esta temática. O que leva ao desejo pela monoparentalidade, entrecruzada com o luto? O que se espera? Negar a morte? Curar a ferida? Recuperar esperança ? Dar sentido à vida? A interface entre o sofrimento pela morte do companheiro/a e a decisão sobre o destino do seu material genético criopreservado pode trazer dificuldades na realização do processo de elaboração do luto. Há também possibilidade de não se considerar consequências futuras sobre a relação com a possível criança a ser concebida neste contexto e o lugar que ela vai ocupar na vida familiar. Essa forma de reprodução se sustenta sem a vida do/a parceiro/a?
Segundo Quayle e Dornelles8 (2015) essa “orfandade programada ocupa um locus na tessitura e na rede familiar ampla e, mesmo quando existe a expressa autorização do/a doador/a do material genético para sua utilização, é mister que se compreenda as contingências sob as quais o processo de subjetivação dessa criança começa, sua missão e sua história”.
A reprodução assistida post mortem traz o questionamento dos limites para a realização do desejo de ter um filho, surgindo novas equações e reflexões sobre o possível e o desejável7.
O profissional de saúde mental precisa levar em consideração essas questões, evidenciando a importância de compreender as motivações do enlutado para realizar a reprodução post mortem, os significados dessa escolha, simultânea ao processo de luto, condição importante que pode interferir nessa decisão9.
Fica evidente a complexidade do uso desta técnica nas condições referidas acima, o que demonstra a necessidade de se atentar aos interesses de todas as partes envolvidas: o/a doador/a falecido/a, o/a cônjuge sobrevivente e/ou a família do/a falecido/a e a criança a ser gerada, fruto de uma orfandade que designará um lugar a ela, um lugar ainda desconhecido , um lugar a ser desvendado.
De acordo com Huang et al.10 (2022) cria-se o lugar de “filhos monoparentais ou, mesmo, órfãos”, com a possibilidade de crescerem sentindo-se injustiçados ou estigmatizados por terem sido concebidos após a morte de um dos pais genéticos. A outra preocupação é que os descendentes possam considerar-se filhos memoriais ou substitutos do falecido.
Recomenda-se prudência e cautela da equipe multiprofissional na realização deste procedimento, que considere e avalie questões éticas, legaise religiosas envolvidas no processo decisório do/a viúvo/a e familiares do/a falecido/a. Além das implicações subjetivas de se ter material genético criopreservado, ressaltamos a importância do acompanhamento psicológico ao enlutado, evitando uma decisão precipitada, inconsequente, focada na dor da perda ou dificuldade de aceitar a morte do/a parceiro/a. As questões psicossociais subjacentes a este contexto precisam ser acolhidas, refletidas e integradas, favorecendo a ponderação acerca dos riscos e benefícios da escolha.
A possibilidade de escuta do enlutado que vivencia esta situação deve favorecer reflexões sobre as discussões acerca do tema, seu luto, sua decisão, e as implicações bioéticas e psicoemocionais a todos os envolvidos. Será o material genético da pessoa falecida, um bem a ser transmitido em caso de divórcio ou morte de um dos cônjuges?
Considerações finais
É essencial que os riscos inerentes à reprodução assistida post mortem sejam apresentados e discutidos antes do início do ciclo de tratamento a respeito das eventuais decisões frente ao que fazer no caso de morte de um dos membros do casal, ou em relação a uma pessoa solteira que deixou suas células criopreservadas, destacando a quem pertence o projeto parental11.
Referências
- Bahadur G. Death and conception. Human Reproduction, 2002; 17(10): 2769-75. Disponível em: https://doi.org/10.1093/humrep/17.10.2769. Acesso em: 02 fev. 2024
- CFM. RESOLUÇÃO nº 2.320/2022. Adota normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida. Brasília, 20 set. 2022. Disponível em: 2320_2022.pdf (cfm.org.br), Acesso em: 29 jan. 2024.
- Lourenço LC. Inseminação artificial homóloga póstuma: análise bioética do planejamento familiar. Rev. Bioét.(Impr.) 2022; 30(3): 505-15. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/FPgfh3d8Y8K4XVrXnGtWCWH/?lang=pt# Acesso em: 02 fev. 2024.
- Moreira MN. Post-Mortem assisted reproduction: a bereavement and decision process. 2012. 158 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/15235. Acesso em: 18 jan. 2024.
- Bahadur G. Posthumous assisted reproduction (PAR): cancer patients, potential cases, counselling and consent. Human Reproduction, 1996; 11(12): 2573-75. Disponível em: 11-12-2573.pdf (silverchair.com). Acesso em 02 fev. 2024.
- Straube KM, Dornelles LMN. Uso de Sêmen Pós-morte: vicissitudes de um tempo complementar possível. In: Straube KM, Melamed RMM. Temas Contemporâneos de Psicologia em Reprodução Humana Assistida – a infertilidade em seu espectro psicoemocional. São Paulo: Livrus, 2015, p. 199-216.
- Farinati DM, Montagnini HML. Vivências e desfechos da reprodução assistida – uso de gametas pós-morte, descarte embrionário e vida sem filhos. In: Avelar CC, Caetano JPJ. Psicologia em Reprodução Humana. São Paulo: SBRH, 2018, p. 71-5.
- Quayle J, Dornelles LM. Monoparentalidade programada e reprodução assistida: da “produção independente” à utilização de sêmen post mortem. Mudanças – Psicologia da Saúde, 2015; 23(1): 31-40.
- Quayle J, dos Santos JR. Reprodução Assistida post mortem: possibilidades de atenção psicossocial. In: Straube KM, Melamed RMM. Reprodução Assistida – Guia de Recomendações de Atenção Psicossocial nos Centros de Reprodução Assistida. São Paulo: Soul, 2018, p.51-5.
- Huang H, Li J, Xiao W, et al. Attitudes toward posthumous assisted reproduction in China: a multi-dimensional survey. Reprod Health, 2022; 19(122): 1-13. Disponível em> https://doi.org/10.1186/s12978-022-01423-9. Acesso em 02 fev. 2024.
- Melamed RMM. PAPs e Questões Específicas. In: Straube KM.Suassuna D.. Aportes para a Elaboração de Protocolos de Atenção Psicológica na Infertilidade e Reprodução Humana Assistida (PAPs). Goiânia. 2023, p. 40-8.