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Comitê: Psicologia

A Inteligência Artificial na Reprodução Assistida: possíveis impactos subjetivos e sociais

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Autoras: Arielle Nascimento, Flávia Giacon, Valéria Teixeira, Simone Perelson e Vanya Dossi

Coordenadora: Lia Mara Dornelles

Comitê de Psicologia SBRH: Lia Mara Dornelles, Valéria Teixeira, Arielle Nascimento, Cássia Avelar, Débora Farinati, Flávia Giacon, Helena Montagnini, Helena Prado, Juliana Roberto dos Santos, Kátia Straube, Luciana Leis, Rose Marie Melamed, Simone Perelson, Vanya Dossi

 

Highlight

O impacto das inovações tecnológicas é profundo e multifacetado. No campo da Reprodução Assistida, os avanços também são frequentes, e nem sempre o psiquismo acompanha e compreende na mesma velocidade com que as novidades emergem. É essencial abordar essas mudanças de maneira holística, considerando não apenas os benefícios imediatos nos tratamentos, mas também os efeitos psicossociais, éticos e culturais que podem advir. Destacamos, neste texto, a presença da Inteligência Artificial (IA), que está desempenhando um papel cada vez mais importante na Medicina, incluindo a área de Reprodução Humana.

Introdução

As inovações tecnológicas ao longo das últimas décadas vêm se inserindo de forma constante e veloz nas diversas áreas da nossa vida. Ao mesmo tempo em que são recebidas com um certo fascínio, por trazerem possibilidades de facilitar e melhorar a vida humana, também apresentam uma face assombrosa, na medida em que, como diz Jerusalinsky,(1) comportam um grau de imprevisibilidade, produzindo, na miudeza do dia a dia, transformações nos modos de regular os costumes mais cotidianos da vida e as trocas nas relações entre os próximos.

O que acontece no campo da Reprodução Humana não é diferente. Ao mesmo tempo em que a tecnologia permite que ocorra maior assertividade, pode desencadear certo grau de ansiedade e desconforto, não só diante do resultado negativo, mas também no decorrer de todo o processo. Desta feita, faz-se necessário acolher o sujeito frente aos conteúdos desencadeados. A tecnologia oferece diversas oportunidades para aqueles que desejam conceber um bebê, criando novas formas de constituir família, construir a parentalidade, e, consequentemente, pode impactar subjetivamente pacientes e profissionais que se ocupam dela. No entanto, por ser um campo de constantes avanços, nem sempre o psiquismo consegue acompanhar e compreender na mesma velocidade as novidades que emergem, o que nos convida a ficar atentos em como todo esse aparato tecnológico e sua ilusão de infalibilidade pode afetar o modo como pacientes e profissionais compreendem os tratamentos da Reprodução Assistida, sobretudo no que diz respeito ao que eles portam de imprevisibilidade. Destacamos, neste texto, a presença da Inteligência Artificial (IA), que está desempenhando um papel cada vez mais importante na Medicina, incluindo a área de Reprodução Humana.

A integração da Inteligência artificial na Medicina Reprodutiva

Embora ainda esteja em desenvolvimento, a integração da IA ​​na Medicina Reprodutiva promete avanços significativos com o aumento da eficácia dos tratamentos de fertilização in vitro (FIV). Alguns equipamentos já são utilizados em clínicas reprodutivas, como o Embryoscope, incubadora que promove uma estabilidade de temperatura e de gases durante o desenvolvimento do embrião, otimizando o processo seletivo deles, podendo detectar alterações e comportamentos que o embriologista não consegue observar a olho nu. Outro equipamento é o Embryology Management Assistant (EMA), que, acoplado ao Time Lapse (Geri), é um sistema de filmagem e monitoramento contínuo que mostra a evolução dos embriões desde o processo de cultivo até a avaliação final, em menos tempo e sem manipulação excessiva deles, interferindo menos no meio em que os embriões estão inseridos. Depois de analisar as notas dadas pelo EMA, é selecionado o embrião com a melhor nota para ser transferido ou congelado. Além dessa seleção, os pacientes também poderão acompanhar o desenvolvimento dos seus embriões por meio de um aplicativo nos seus aparelhos celulares.

Segundo Barnes et al., em estudo publicado na revista The Lancet Digital Health, “a Inteligência Artificial poderia determinar com uma precisão em torno de 70% se um embrião fecundado in vitro é geneticamente viável”(2:30) (tradução nossa). Além disso, conforme Zaninovic(3) em artigo publicado na Weill Cornell Magazine, o recurso da IA permite reduzir o número de embriões a serem biopsiados e implantados, diminuindo os riscos de gravidez múltipla, assim como os custos do tratamento. 

Por meio dessas tecnologias digitais, a seleção de embriões está evoluindo para um procedimento automatizado, o que pode significar confiabilidade e reprodutibilidade superiores, já que, segundo especialistas, é uma tecnologia que resultará em taxas maiores de gravidez para as pacientes.  

De todo modo, é incontestável que a seleção de óvulos, espermatozoides e embriões de qualidade seja essencial para o resultado de um tratamento, e, neste sentido, esta seleção automatizada oportunizada pela IA vem agregar e dar sua contribuição.

Possíveis impactos subjetivos e sociais da integração entre IA e Reprodução Assistida

Devido ao fato de a integração entre a IA e a Reprodução Assistida ainda ser bastante recente, as pesquisas e a literatura sobre os impactos subjetivos e sociais são, no momento, praticamente inexistentes, de modo que mais do que examinar suas ocorrências passadas, cabe, a partir da análise dos impactos de outras tecnologias – associadas, até o momento, às novas tecnologias reprodutivas ou que ainda prometem se associar a elas –, refletir sobre o que o futuro, próximo e distante,  nos reserva potencialmente. Além disso, compete a nós termos bastante cautela para não nos precipitarmos com posições excessivamente entusiasmadas ou, por outro lado, catastrofistas. Partiremos, então, de algumas observações coletadas de publicações recentes para concluir com nossas considerações.   

  • Sobre alguns fatores entusiasmantes: a Reprodução Humana rumo a uma humanização das relações 

Em artigo publicado no site da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA),(4) o embriologista Bernardo Moura afirma que a integração entre a IA e a Reprodução Assistida trará para os pacientes maiores assertividade e transparência. Em suas palavras:

Para muitos pacientes, ainda há um lado obscuro no tratamento de FIV que é a parte laboratorial. A possibilidade de acompanhar ao vivo o desenvolvimento embrionário, compreendendo mecanismos de classificação do score, auxilia muito na interação clínica-laboratório-paciente. Uma interação em que todos estão pautados em uma mesma linguagem e entendimento para tomada de decisões e escolha do melhor caminho para cada paciente.(4)

Além disso, o Dr. Bernardo avalia que essa integração, que tende a se ampliar nos próximos anos, permitirá que a IA realize coleta e análises de dados que a visão e o conhecimento humanos não serão capazes de efetuar, levando a uma mudança na própria formação e prática dos profissionais da Reprodução Assistida. 

Enquanto alguns podem ser levados a pensar que médicos e embriologistas perderão espaço para a IA, o embriologista considera o contrário, e acredita que os profissionais qualificados não perderão espaço. “No entanto, profissionais com competências mais humanas ou soft skills provavelmente se destacarão, pois será um grande diferencial no futuro”(4).

É bastante interessante observar que o raciocínio sustentado pelo embriologista segue a mesma lógica daquele que sustenta o biólogo e filósofo Henri Atlan(5) em seu livro sobre o útero artificial. Segundo o embriologista, antes de a IA eliminar a importância dos profissionais da Reprodução Assistida, ela irá tornar esta relação menos técnica e mais humanizada.(4) Na mesma direção, o filósofo afirma que, antes de a IA eliminar a assimetria imemorial entre os sexos na função da reprodução  (isto é, o fato de os bebês não poderem ser gestados senão no útero das mulheres), e, com isso, extinguir os fundamentos da diferença sexual e da organização das sociedades humanas, ela irá desbiologizar e humanizar as relações matrimoniais e de filiação.(5) Em seus termos: 

[…] de modo aparentemente paradoxal, a hiper medicalização da reprodução levará a desbiologizar as relações dos pais, entre eles e com seus filhos. Continuando e concluindo, talvez em uma transformação já iniciada, o parentesco e a diferença entre os sexos serão cada vez mais sociais e menos biológicos (tradução nossa).(5:166-67)

  • Sobre alguns aspectos inquietantes: como lidar com as falhas, o imprevisível e o irracional?

Como vemos, profissionais e clínicas estão se adequando às inovações e se atualizando, ofertando aos seus clientes tecnologia de ponta, cercando-se de todos os lados a fim de tentar dirimir danos e erros. Aumenta-se o controle, a segurança, a transparência e a garantia de que o melhor foi realizado e que “fizemos tudo o que foi possível”. Ainda assim, mesmo após a seleção de embriões com base na morfologia, na fotografia microscópica em lapso de tempo ou na biópsia de embrião com teste genético pré-implantação, não se pode prever e garantir o resultado final.

A IA, presente hoje nos serviços de Reprodução Humana, aprofunda de maneira radical o monitoramento na Reprodução Assistida, o que nos faz retomar com cuidado o nosso olhar para os possíveis impactos no psiquismo dos sujeitos que dela se utilizam. Quais os possíveis impactos emocionais quando, após uma escolha criteriosa por uma clínica, o Beta hCG não resultou positivo? Quem “falhou”? Eis a pergunta que inevitavelmente pode retornar ao paciente que, diante de um quadro de extremo controle e eficácia técnica, pode não entender como ocorreu a falha. Nestes casos, não é nada incomum que a responsabilidade – ou culpabilização – retorne para ele. Há uma transferência direta para o paciente? 

Embora ainda haja muito o que observar e compreender sobre tais impactos emocionais/psíquicos, a Psicologia já tem apontado para alguns de seus efeitos. Ao mesmo tempo em que podem aumentar a eficiência na escolha após a fertilização dos gametas, monitoramento dos embriões e do corpo, assim como reduzir alguns riscos reprodutivos, podem também apontar para uma ilusão de controle, de infalibilidade e de garantia no tratamento. Mais do que isso, como já observara, no ano 2002, a psicanalista Monette Vacquin(6), por mais que nos falte tragicamente uma compreensão do conjunto de alguns dos mais espantosos acontecimentos no campo da Reprodução Assistida, é possível depurar deles uma lógica, a qual revela uma mistura inextricável de uma racionalidade instrumental e de uma irracionalidade incontrolável. Mais especificamente, ele revela uma temível aliança do inconsciente, da ciência e do mercado, ficando intrínseca aqui a vontade tecnocientífica de tudo saber, ver e controlar, a lógica mercantil, que transforma todo produto em valor intercambiável, e alguns dos fantasmas inconscientes mais arcaicos.(7)   

Para Lacan,(8) o controle é uma forma de lidar com a falta, a incompletude e a divisão que caracterizam a condição humana. O controle pode ser visto como uma tentativa de preencher o vazio que existe dentro de cada um de nós, mas também pode ser uma fonte de sofrimento e angústia.

A Reprodução Assistida é um campo que lida com questões de amplo impacto emocional, de onde emergem conflitos pessoais, conjugais e sentimentos diversos diante da infertilidade e do desejo de parentalidade. Também, por ser um campo em que se ocupa do cuidado de pessoas em grande vulnerabilidade, toda tecnologia presente deverá considerar a ética e o cuidado, cuidado este que só pode ser realizado entre pessoas, não podendo ser sobreposto pela performance automatizada e asséptica da tecnologia.

Considerações finais

Como sinalizamos, as novidades trazidas pela IA nos impedem de simbolizar com seus ineditismos e constantes avanços. Assim, se realmente quisermos acompanhar os efeitos de tais tecnologias, precisamos escutar as experiências de pacientes e profissionais diante desses dispositivos utilizados nos tratamentos, pois é por meio do compartilhamento dessas experiências com o outro que alguma elaboração e simbolização pode ser feita. É indispensável que as narrativas de cada um tenham lugar  nos serviços de Reprodução Assistida, para que, consequentemente, novos sentidos possam ser dados às inovações tecnológicas. Ou seja, a impessoalidade e a automaticidade, tão presentes na IA, não podem nos fazer perder de vista que, sobretudo na Reprodução Assistida, a tecnologia precisa ser usada com cuidado e ética, sob o risco de desconsiderar o que o nosso trabalho tem de mais  precioso: a singularidade das histórias que chegam a nossas mãos.

Referências 

  1. Jerusalinsky J. Que rede nos sustenta no balanço da web? O sujeito na era das relações virtuais. In: Baptista A, Jerusalinsky J, organizadores. Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações virtuais. Salvador: Ágalma; 2017.
  2. Barnes J, Brendel M, Gao VR, Rajendran S, Kim J,  Li Q, et al. A non-invasive artificial intelligence approach for the prediction of human blastocyst ploidy: a retrospective model development and validation study. The Lancet Digital Health; 2022:5(1):28-40.
  3. Weill Cornell Medicine. Harnessing artificial intelligence technology for IVF embryo selection. Weill Cornell Medicine [Internet]; 2022 Dec 19 [cited 2024 Feb 6]. Available from: https://news.weill.cornell.edu/news/2022/12/harnessing-artificial-intelligence-technology-for-ivf-embryo-selection#:~:text=An%20artificial%20intelligence%20algorithm%20can,researchers%20at%20Weill%20Cornell%20Medicine
  4. Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida. A influência da Inteligência Artificial na Reprodução Assistida. Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida [Internet]; 2023 Jul 21 [cited 2024 Feb 6]. Available from: https://sbra.com.br/noticias/a-influencia-da-inteligencia-artificial-na-reproducao-assistida/
  5. Atlan H. L’utérus artificial. Paris: Seuil; 2005.
  6. Vacquin M. Vers la “guérison” de l’espèce? In: Ferenczi T, editor. Changer la vie? Bruxelas: Éditions Complexe; 2002. p. 53-65.
  7. Perelson S. Psicanálise e Medicina da Reprodução: notas sobre três tempos na história desse encontro. In: Birman J, Fortes I, Perelson S, organizadores. Um novo lance de dados – Psicanálise e Medicina na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Cia de Freud; 2010.
  8. Lacan J. O seminário – livro 4: a relação de objeto. Texto estabelecido por Jacques Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1995.

 

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