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Comitê: Famílias Plurais

Possibilidades de tratamento de Reprodução Assistida para pessoas LGBTQIA+

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Autoria: 

Ludmila Machado Neves Bercaire

Comitê de Famílias Plurais

Coordenadora: 

Lucia Alves da Silva Lara

Membros: 

Carla Maria Franco Dias

Bruna Holanda Luz Nascimento

Camylla Felipe Silva 

Charles Schineider Borges

Estella Thaisa Sontag dos Reis

Carla Maria Franco Dias

Mary Elly Alves Negrão


1. Introdução

 

Desde a Rebelião de Stonewall em 28/06/1969, que deu início ao que hoje conhecemos como movimento LGBTQIAPN+, pessoas de diversas orientações sexuais e identidades de gênero vem conquistando reconhecimento, respeito e representatividade na sociedade. O que inicialmente tratava-se de uma luta por direitos humanos e civis básicos hoje evoluiu e engloba direitos em diversas áreas, como os direitos trabalhistas, o direito à promoção da saúde mental e o direito reprodutivo. Afinal o direito de constituir uma família deve ser universal. 

A evolução da sociedade foi acompanhada por avanços técnicos na medicina reprodutiva que viabilizaram os tratamentos para diferentes modelos de família, contribuindo para a compreensão da parentalidade de famílias plurais, sejam famílias com dupla paternidade, dupla maternidade, famílias transgêneros, homoafetivas e de pessoas solteiras.

No Brasil, essa evolução social veio acompanhada da evolução no âmbito jurídico, com o reconhecimento da união estável para a população LGBTQIAPN+. Com isso, houve um incremento na demanda por reprodução assistida para viabilizar a constituição de famílias plurais que desejam ter filhos biológicos. Dentre as diversas técnicas de reprodução assistida disponíveis destacam-se: a inseminação intrauterina (inseminação artificial), a fertilização in vitro (FIV), a doação de gametas femininos ou masculinos e o útero de substituição (doação solidária). É importante salientar que todas essas técnicas são regulamentadas pela Resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM) (1). 

  • Definições
  •  Dupla paternidade

Casais homoafetivos masculinos que desejam filhos biológicos podem realizar Fertilização in Vitro (FIV) com óvulos de doadora e útero de substituição (útero solidário ou barriga solidária). Os parceiros podem definir entre si de quem será o sêmen utilizado na fertilização, ou, caso exista o desejo de utilizar o sêmen de ambos, uma parte dos óvulos pode ser fertilizada com o sêmen de cada parceiro, desde que a clínica de reprodução assistida possa rastrear de qual origem genética os embriões foram gerados. 

De acordo com a última resolução do CFM, a doadora de gametas (óvulos) deve ser voluntária e anônima, compatível com as características físicas do casal para gerar os embriões ou a doadora poderá ser conhecida, desde que seja familiar com grau de parentesco de até quarto grau de um dos dois parceiros. Entende-se como familiar de até quarto grau um parentesco que vai desde irmãs, mães, avós, tias ou primas de um dos membros do casal. No caso da opção por uma doadora familiar, é importante salientar que a condição necessária para esta possibilidade de tratamento é que não se incorra em consanguinidade para a prole, ou seja, se a doadora é familiar de um dos membros do casal, o sêmen que deverá ser utilizado é do outro parceiro (1). 

Em relação à implantação dos embriões, deve ser feita em um útero solidário, ou seja, uma mulher voluntária, preferencialmente com prole constituída, parente de até quarto grau de um dos genitores, sem que haja fim lucrativo ou comercial, desde que se encontrem em condições de saúde (física e emocional) e consideradas aptas a gestar. É importante salientar que a cedente temporária de útero não pode ser a mesma doadora de gametas (óvulos). Na inexistência de familiar de até quarto grau que preencha os critérios para a cessão temporária de útero, o centro de reprodução assistida poderá solicitar um parecer técnico do CFM, que irá deferir ou indeferir a realização do tratamento em barriga solidária de não familiar (amiga ou voluntária), de acordo com as condições individuais do caso (2).

  • Dupla maternidade

Para casais femininos, pode ser realizada a inseminação intrauterina ou FIV com sêmen de doador anônimo, voluntário, mediado por bancos de sêmen nacionais ou internacionais. Também poderá ser por doação de gametas por parentes de até quarto grau de uma das parceiras, sendo que neste caso, os óvulos a serem utilizados devem ser obrigatoriamente da outra parceira, para que não se incorra em consanguinidade (1). 

A escolha pela inseminação artificial ou FIV varia de acordo com fatores como idade da mulher, existência de condições ginecológicas que possam reduzir as chances de sucesso nos tratamentos de baixa complexidade, como endometriose, baixa reserva ovariana, dentre outros. Quando há desejo de um filho biológico das duas mães, ou seja, a gestação compartilhada (ROPA) utiliza-se o sêmen de doador para fertilizar os óvulos de uma parceira e transferência para o útero da outra parceira, de forma que ambas participem do tratamento. Vale ressaltar que os resultados clínicos com o método ROPA e FIV com oócitos autólogos foram semelhantes em relação a taxas de gravidez por transferência embrionária e taxas de nascidos-vivos (3). 

Em casais onde não há o desejo da gravidez compartilhada, ou quando uma das parceiras tem contraindicação de gestar e/ou de gerar óvulos para a FIV, pode-se realizar a FIV com óvulos e útero da mesma parceira ou inseminação artificial com sêmen de doador. Pode-se também utilizar a inseminação intrauterina com sêmen de doador desde que exista função preservada das tubas uterinas. 

A realização de inseminação artificial caseira para o casal feminino, é contraindicada pelo elevado risco de contaminação biológica, infecções, complicadores socioemocionais que envolvem desde aspectos da maternidade até questões jurídicas futuras no que concerne à parentalidade e os diretos referentes à prole que não são assegurados (2). 

  • Famílias transgênero

Pessoas trans podem utilizar a reprodução assistida para preservar sua fertilidade, idealmente antes de iniciar o processo de terapia hormonal afirmação de gênero (THAG), e posteriormente utilizar os gametas armazenados para realizar a fertilização in vitro ou a inseminação artificial. A preservação de fertilidade é valida tanto para homens trans quanto para mulheres transgênero (2). Mas, vale salientar a importância de informar a pessoa trans sobre o dano no sistema reprodutivo promovido pela THAG e e pela cirurgia de afirmação de gênero, o que pode influenciar a decisão da pessoa sobre a realização da preservação da fertilidade (4). 

No caso dos homens trans, a suspensão da testosterona resulta em retorno da menstruação em quatro a seis meses sendo assim, restaurada a capacidade reprodutiva. Oportunamente, pode-se realizar o congelamento de óvulos antes da THAG, ou mesmo durante o processo de hormonização, sem prejuízo nas taxas de sucesso, uma vez que a exposição à testosterona entre homens transexuais não tem impacto adverso nas taxas de fertilização ou no desenvolvimento e qualidade do embrião no período pré-implantacional (5). Para a realização do congelamento dos óvulos, idealmente a THAG deve ser suspensa por três meses antes da indução da ovulação, ainda que alguns estudos científicos recentes tenham demonstrado taxas de recuperação oocitária semelhantes entre homens trans em vigência da THAG e mulheres cis submetidas a indução da ovulação para coleta de oócitos. No momento em que este homem trans tiver desejo reprodutivo, ele pode receber em seu útero embriões gerados com seus óvulos + sêmen do parceiro ou no caso de parceira feminina, através de sêmen de doador. Caso o homem trans não possua útero, essa gestação poderá se dar em útero de substituição, em parente de até quarto grau, de acordo com a regulamentação do CFM.

No caso de mulheres trans, a THAG consiste em administração de antiandrógenos combinados com estrogênios, o que pode comprometer temporaria ou permanentemente a sua capacidade reprodutiva (6). Por isso, antes da THAG é necessário oferecer a preservação da fertilidade para toda mulher trans através do congelamento de sêmen (7). Mulheres trans que não tiveram a oportunidade de realizar o congelamento de sêmen antes da terapia hormonal, são orientadas a suspender a hormonização por um período que varia na literatura em torno de três a seis meses para recuperação da espermatogênese. No momento em que esta mulher tiver desejo reprodutivo, ela pode realizar FIV ou inseminação intrauterina com seu sêmen e oócitos da parceira feminina ou, no caso de parceiro masculino, realizar FIV com seu sêmen ou do parceiro utilizando oócitos de doadora e útero de substituição. 

Em situações que não foi realizada a preservação da fertilidade, ou, na falha de obtenção de gametas após período de interrupção da THAG a pessoa trans poderá exercer a parentalidade através da ovodoação ou doação de sêmen. 

  • Parentalidade independente

As pessoas que desejam exercer a parentalidade independente podem utilizar de FIV ou inseminação intrauterina para gerar filhos biológicos com o auxílio dos bancos nacionais ou internacionais de óvulos ou sêmen. Nesses casos o(a) doador(a) de gametas, deve ser obrigatoriamente desconhecido, uma vez que não se aplica a possibilidade de doador familiar de 4 grau, pois incorreria na situação de consanguinidade.

  • Co-parentalidade

A co-parentalidade é definida pela situação em que duas pessoas adultas não querem manter um vínculo romântico mas desejam gerar, educar, dar carinho e atenção ao filho em conjunto. Surge assim uma família sem necessariamente haver o laço amoroso entre os pais. Do ponto de vista jurídico, no Brasil, ainda não há legislação específica que se manifeste acerca da co-parentalidade, mas existem recomendações para a co-parentalidade segura, como realizar o chamado “contrato de geração de filhos”. Este contrato pode ser feito de forma particular ou por escritura pública e será estabelecido, como em qualquer outro tipo de relação, o registro da criança, a guarda compartilhada, direito de convivência, pensão alimentícia, dentre outros pontos que garantam os direitos da criança. 

A co-parentalidade não está prevista na portaria do CFM, sendo assim, as clínicas de Reprodução Assistida não tem respaldo para realizar o tratamento de reprodução em dois adultos que não tenham contrato de união estável ou casamento, independente da orientação sexual e de gênero. É recomendável, portanto, procurar informações específicas, assessoria jurídica e consultar uma clínica especializada em reprodução assistida para avaliar as opções disponíveis e escolher a técnica mais adequada e, eventualmente, levar o parecer ao CFM para análise individual do caso. 

Independente do modelo de família estabelecido ou desejado em pessoas LGBTQIAPN+, é fundamental contar com o apoio de equipe multidisciplinar com visão humanizada e acolhedora, para lidar com as complexidades enfrentadas na jornada de construir famílias plurais. 

  • Referencias
  1. 2320_2022.pdf [Internet]. [citado 12 de agosto de 2023]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2022/2320_2022.pdf
  2. De Wert G, Dondorp W, Shenfield F, Barri P, Devroey P, Diedrich K, et al. ESHRE Task Force on Ethics and Law 23: medically assisted reproduction in singles, lesbian and gay couples, and transsexual people†. Hum Reprod. setembro de 2014;29(9):1859–65. 
  3. Brandão P, Ceschin N, Cruz F, Sousa-Santos R, Reis-Soares S, Bellver J. Similar reproductive outcomes between lesbian-shared IVF (ROPA) and IVF with autologous oocytes. J Assist Reprod Genet. setembro de 2022;39(9):2061–7. 
  4. Mattelin E, Strandell A, Bryman I. Fertility preservation and fertility treatment in transgender adolescents and adults in a Swedish region, 2013-2018. Hum Reprod Open. 2022;2022(2):hoac008. 
  5. Israeli T, Preisler L, Kalma Y, Samara N, Levi S, Groutz A, et al. Similar fertilization rates and preimplantation embryo development among testosterone-treated transgender men and cisgender women. Reprod Biomed Online. setembro de 2022;45(3):448–56. 
  6. de Nie I, Meißner A, Kostelijk EH, Soufan AT, Voorn-de Warem I a. C, den Heijer M, et al. Impaired semen quality in trans women: prevalence and determinants. Hum Reprod. 1o de julho de 2020;35(7):1529–36.
  7. Barda S, Amir H, Mizrachi Y, Dviri M, Yaish I, Greenman Y, et al. Sperm parameters in Israeli transgender women before and after cryopreservation. Andrology. setembro de 2023;11(6):1050–6.


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