Fone: 11 5055-6494  |  11 5055-2438
Whatsapp da Sociedade
Associe-se à
SBRH
Renove sua Anuidade
Área do
Associado

Comitê: Enfermagem

Atuação do enfermeiro na doação e recepção de óvulos: relato de experiência.

Share on whatsapp
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on email

Júlia Casemiro Barioni¹
Danyele Fernandes Machado²
Thais de Oliveira Gozzo³

¹ Enfermeira. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Programa de Pós-graduação Enfermagem em Saúde Pública.
² Enfermeira. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
³ Professora Associada (Livre Docente) na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

 

Palavras-chave: Infertilidade, Fertilização in Vitro, Doação de óvulos, Recepção de óvulos, Consulta de enfermagem, Sistematização da Assistência de Enfermagem.

Introdução

A infertilidade afeta milhões de pessoas em idade reprodutiva em todo o mundo e tem impacto nas famílias e comunidades. As estimativas sugerem que cerca de 48 milhões de casais e 186 milhões de pessoas vivem com infertilidade em todo o mundo (OMS, 2020). As causas variam entre azoospermia, doenças tubárias, do canal endocervical, infecções pélvicas, síndrome anovulatória e menopausa precoce. Além disso, há uma parcela significativa dos casos por motivos desconhecidas, como Infertilidade ou Esterilidade Sem Causa Aparente – ISCA ou ESCA (GNOTH et al., 2005; BRASIL, 2013).

Este contexto, associado a baixa reserva ovariana identificada após avaliação clínica, dosagens hormonais e má resposta à estimulação ovariana, candidatam potenciais casais para a recepção de óvulos doados anonimamente.

O uso do gameta feminino doado é um procedimento comum em reprodução assistida, auxilia no projeto da parentalidade, e na diminuição das taxas de aneuploidia dos embriões produzidos por mulheres com mais de 35 anos, aumentando índice de sucesso que se correlacionam com a idade da doadora e qualidade do óvulo, resultando em um desfecho clínico com maior chance de gravidez (MAKHIJANI; GROW, 2020).

Sobre a doação de óvulos no Brasil, atualmente, esta não pode ter caráter lucrativo ou comercial, sendo permitida a doação voluntária e/ou a doação compartilhada. Na doação compartilhada a doadora e a receptora compartilham tanto do material biológico quanto os custos financeiros que envolvem o procedimento de reprodução assistida. É preconizado a maioridade civil, sendo idade limite de 37 anos e o anonimato deve ser preservado durante todo o processo e após finalização, ou seja, os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa (CFM, 2021).

Em 2021 foi aprovada a doação de óvulos entre parentes de até 4º (quarto) grau (primeiro grau – pais/filhos; segundo grau – avós/irmãos; terceiro grau – tios/sobrinhos; quarto grau – primos), desde que não incorra em consanguinidade, sendo o único caso no qual não incorre o anonimato no país (CFM, 2021).

No processo de doação de óvulos ou ovodoação, a doadora fará uso de medicamentos para a estimulação ovariana, seguido por procedimento cirúrgico para a aspiração de óvulos ou oócitos em laboratório (FIGUEIRA et al., 2014). Estes óvulos serão fertilizados com o material genético do parceiro da receptora (sêmen) ou sêmen de doador, por meio da Fertilização In Vitro (FIV) ou da injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI). Ressaltamos que homens ou mulheres que desejam monoparentalidade intencional e voluntária, conhecida como “produção independente” ou casais homoafetivos, também podem necessitar de óvulos e/ou sêmen doados (SILVA; DANTAS; FERRAZ, 2018).

Antes da doação dos óvulos as potenciais doadoras devem passar por exames, e os protocolos variam de acordo com cada pais. Nos Estados Unidos da América (EUA) o FDA (Food and Drug Administration) e a ASRM (American Society for Reproductive Medicine) recomendam que as doadoras realizem exame físico completo, investigação da história pessoal e sexual, exames laboratoriais que pesquisem Chlamydia trachomatis, Neisseria gonorrhoeae, Hepatites B e C, Vírus HIV, Sífilis e Vírus do Nilo Ocidental, triagem genética, consulta jurídica e aconselhamento psicoeducativo, que analisa a motivação para a doação, os relacionamento interpessoais, histórico de saúde mental, entre outros (ASRM, 2021).

No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) regulamenta a realização de testes laboratoriais para infecções como: sífilis; hepatite B (HBsAg e anti-HBc); hepatite C (anti-HCV); HIV 1 e HIV 2; HTLV I e II; vírus Zika; Chlamydia trachomatis, e Neisseria gonorrhoeae (BRASIL, 2016), sendo também conveniente a realização de exames laboratoriais que excluam outras possíveis comorbidades crônicas nas doadoras de óvulos. De acordo com os protocolos de atendimento do serviço, pode-se associar a consultas médica e de enfermagem a fim de investigar condições físicas e/ou mentais debilitantes, doenças genéticas e outras condições clínicas que possam contraindicar a doação. Nota-se a preocupação de órgãos fiscalizadores nacionais e internacionais em averiguar a saúde das potenciais doadoras de óvulos de forma cautelosa, de modo que as mesmas estejam saudáveis para realizar o procedimento.

Nesse contexto, o enfermeiro tem um papel importante na triagem de doadoras, pois está capacitado a realizar a consulta de enfermagem, a qual permite a realização de anamnese e do exame físico, que corroboram com o processo de investigação que a mesma deve passar. A consulta de enfermagem, é procedimento privativo do enfermeiro, regulamentada pelo Decreto nº 94.406/1987 (BRASIL, 1987). Esta é de fundamental importância pois é possível identificar respostas humanas a condições de saúde/processos de vida e emitir julgamento clínico, estabelecendo os diagnósticos de enfermagem, que podem ser relativos a problemas de saúde, a estados de risco e a disposição para a promoção da saúde (OLIVEIRA et al., 2012).

Por conseguinte, a consulta de enfermagem com os possíveis receptores de óvulos, possibilita conhecer a história de saúde e estabelecer um plano de cuidados, auxiliando os casais no enfrentamento dos problemas reprodutivos, envolvendo um novo e desafiador cuidado de enfermagem que exige conhecimento específico, ético e humanizado para além das tecnologias.

Os candidatos receptores de óvulos também realizam exames laboratoriais para triagem de doenças infeciosas, passam por avaliação de saúde física e mental. Associado a isso, devem ser encorajados a refletir sobre seus critérios na escolha do gameta e se irão revelar aos descendentes como foram concebidos (ASRM, 2021; KIRKMAN-BROWN et al., 2022).

A participação do enfermeiro como integrante da equipe multidisciplinar atuante na Reprodução Humana Assistida já é realidade, e as tendências indicam que a demanda por ciclos de reprodução assistida com gametas doados é crescente (KIRKMAN-BROWN et al., 2022). Por isso é fundamental produções científicas que enfoquem a atuação do enfermeiro na ovodoação e ovorecepção, cenário que envolve um novo cuidado de enfermagem e exige conhecimento específico e ético.

Objetivo

Relatar as ações do enfermeiro no âmbito da doação e recepção de óvulos realizadas em um serviço de reprodução humana.

Método

Estudo de natureza relato de experiência. Relatamos a atuação específica do enfermeiro no setor de doação de gametas e embriões de um serviço de reprodução humana, que apresenta sistematização de trabalho própria baseada nas regulamentações do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da ANVISA. Fato que se justifica por ainda não termos regulamentação específica na temática pelo COREn ou pelo COFEn.

Resultados

Na sistematização da assistência de enfermagem das possíveis doadoras e receptoras de óvulos o enfermeiro planeja, executa, avalia e discute suas condutas com a equipe multiprofissional para alinhamento dos resultados que se deseja alcançar, avaliando as respostas das mulheres constantemente.

Na consulta de enfermagem com as doadoras de óvulos, durante a anamnese, é informado sobre a necessidade do sigilo do processo, investigando a possibilidade de interesse lucrativo e/ou comercial, além de orientações sobre os eventos adversos que podem ocorrer no processo de estimulação ovariana, como a síndrome da hiperestimulação ovariana (SHO). Kirkman-Brown et al. (2022) recomendam que as doadoras sejam informadas de todos os riscos à saúde associados à estimulação hormonal e ao procedimento cirúrgico de captação dos oócitos. Dentre os efeitos reportados por doadoras de óvulos após o procedimento cirúrgico de captação de óvulos, podemos citar: náusea, cefaleia, irritabilidade, mudanças de humor, cólica, dor abdominal, fadiga, hiperestimulação ovariana, edema e sangramento (KENNEY; MCGOWAN, 2010).

Ainda durante a consulta é possível perceber as necessidades de saúde individuais, compreender as motivações para a doação, e realizar toda a triagem inerente ao processo. Os temas mais prevalentes nas consultas são: possibilidade de engravidar após a doação de óvulos, eventos adversos do procedimento de estimulação ovariana, identidade da receptora e do futuro bebê advindo da ovodoação. Por conseguinte, a consulta de enfermagem finaliza com o registro dos dados clínicos e características fenotípicas e de uma amostra de material celular dos doadores.

Todos os exames obrigatórios de triagem clínica da doadora são analisados pela enfermeira e reportados ao médico. Ao término da avaliação médica e de enfermagem é aplicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que visa certificar de que as doadoras compreenderam os riscos inerentes ao procedimento e não apresentam conflito de interesse ou interesse comercial. Destacamos a importância deste momento, pois há a oportunidade de reforçar as informações acerca da regulamentação legal vigente no país como o anonimato e o armazenamento do material doado (KIRKMAN-BROWN et al., 2022; CMF, 2021).

Dentre os registros necessários, também é fundamental o registro dos nascimentos provenientes de óvulos doados, que evitará que uma doadora tenha produzido mais de duas gestações de crianças de sexos diferentes em uma área de um milhão de habitantes. Uma mesma doadora poderá contribuir com quantas gestações forem desejadas, desde que em uma mesma família receptora (CFM, 2021). No estudo de Kirkman-Brown et al. (2022) também é ressaltado que as doadoras devem ser informadas do número máximo de filhos ou famílias que podem ser criados a partir da sua doação e as razões que justificam essas limitações.

O enfermeiro precisa ter conhecimento do regulamento técnico dos Bancos de Células e Tecidos Germinativos estipulado pela ANVISA (2016), para que possa executá-lo em equipe e disparar mudanças na prática clínica para cumprir com os preceitos. Também é fundamental a busca de conhecimento, objetivando conhecer as recomendações e guidelines provenientes de estudos bem consolidados para alicerçar a prática diária.

O processo da ovorecepção se inicia quando o médico especialista indica o uso de óvulos doados, e a partir desta indicação o enfermeiro é responsável por delimitar os próximos passos junto ao casal. Este irá realizar o acolhimento do casal, conhecer o histórico de saúde, analisar o nível de compreensão, verificar se estão de acordo com a ovodoação e estabelecer um plano de cuidados, na tentativa de evitar que surjam ou se agravem problemas conjugais decorrentes da infertilidade.
Os receptores precisam ser informados dos benefícios e dos riscos associados à utilização de óvulos doados, sobre o direito dos doadores, e sobre a possibilidade de o tratamento não resultar em gestação ou em desfecho favorável da mesma (KIRKMAN-BROWN et al., 2022).

Os assuntos mais prevalentes nessas consultas estão relacionados à doadora e o futuro bebê. Destacamos: herança genética e características físicas da doadora, semelhança física do futuro bebê com a doadora, expectativas sobre a saúde física do bebê e sigilo da ovodoação para a futura criança. Além disso questões quanto ao sigilo do procedimento para familiares e amigos próximos bem como possibilidade de o tratamento não resultar em gestação ou nascimento de um bebê, gastos financeiros e tempo de espera por uma doadora, também são temáticas que geram apreensão.

A preocupação com as características físicas da doadora é marcante, pois a maioria dos casais referem não terem a intenção de contar sobre a ovodoação aos familiares e amigos próximos. Eles temem que o bebê nasça com alguma característica diferente do que é esperado por eles e assim fique nítido a diferença de material genético. No serviço de reprodução humana assistida que embasa este relato de experiência a sugestão da escolha das doadoras de óvulos é feita pelo enfermeiro sob aprovação do médico assistente, que deve garantir que a doadora tenha a maior semelhança fenotípica com a receptora.

Kirkman-Brown et al. (2022) aconselham revelar para os descendentes que foram concebidos por gametas doados preferencialmente quando são pequenos, entretanto, a revelação da origem genética para a criança é uma questão complexa que exige acompanhamento de equipe interdisciplinar e atendimento psicológico especializado. A equipe interdisciplinar deve apoiar os casais receptores e auxiliar no processo de enfrentamento das dificuldades, considerando as especificidades de cada família e os significados da ovodoação a depender das crenças, valores e julgamentos pessoais (MONTAGNINI; MALERBI; CEDENHO, 2012).

A atenção psicossocial no tratamento da infertilidade engloba a conscientização sobre a importância da doação de óvulos para a garantia do funcionamento dos bancos de óvulos e consequentemente a realização dos tratamentos reprodução assistida com óvulos doados para que os casais inférteis possam ter filhos (MOURA et al., 2019).

Considerações Finais

A ovodoação e a ovorecepção configuram-se como campos de atuação para o enfermeiro, que são pouco difundidos e conhecidos. Entretanto o uso de óvulos doados tem aumentado constantemente e exige que os profissionais atuantes na área de enfermagem estejam capacitados para atuar junto a doadoras, aos receptores e futuros descendentes da ovorecepção. E esta necessidade de capacitação do profissional nos permite dizer que a temática precisa ser incluída nos currículos da enfermagem.

Em suma, a ovodoação e a ovorecepção ainda são considerados tabus, sendo necessário a conscientização da população, e esperamos que esse relato contribua para disseminação da atuação do enfermeiro na doação e recepção de óvulos, que deve sempre estar alicerçada em princípios éticos, legais e técnicos.

Referências

AMERICAN SOCIETY FOR REPRODUCTIVE MEDICINE. Guidance regarding gamete and embryo donation. Fertility and Sterility, v. 115, n. 6, 2021.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília, 2013. 300 p. (Cadernos de Atenção Básica, n. 26).

______. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Resolução n° 72, de 30 de março de 2016. Altera a Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n.º 23, de 27 de maio de 2011, que dispõe sobre o regulamento técnico para o funcionamento dos Bancos de Células e Tecidos Germinativos e dá outras providências.

______. Decreto no 94.406, de 8 de junho de 1987. Regulamenta a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício da enfermagem, e dá outras providências.

CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM. Resolução no 358, de 15 de outubro de 2009. Dispõe sobre a Sistematização da Assistência de Enfermagem e a implementação do Processo de Enfermagem em ambientes, públicos ou privados, em que ocorre o cuidado profissional de Enfermagem, e dá outras providências.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução no 2.294, de 27 de maio de 2021. Resolução no 17, de 1991. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida – sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudam a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos, tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros e revogando a Resolução CFM nº 2.168.

FIGUEIRA, R. C. S. et al. The efficiency of a donor-recipient program using infertile donors’ egg cryo-banking: A Brazilian reality. J Assist Reprod Genet, v. 31, p. 1053–1057, 2014.
GNOTH, C. et al. Definition and prevalence of subfertility and infertility. Hum Reprod, v. 20, n. 5, p. 1144–1147, 2005.

KENNEY, N. J.; MCGOWAN, M. L. Looking back: egg donors’ retrospective evaluations of their motivations, expectations, and experiences during their first donation cycle. Fertil Steril, v. 93, n. 2, p. 455-66, 2010.

KIRKMAN-BROWN, J. et al. Good practice recommendations for information provision for those involved in reproductive donation. Human Reproduction Open, v. 00, n. 0, p. 1–26, 2022.

MAKHIJANI, R.; GROW, D. R. Donor egg is the best second choice for many infertile couples: real progress in overcoming age-related fertility is not here yet. Journal of Assisted Reproduction and Genetics, v. 37, p. 1589–1591, 2020.

MONTAGNINI, H. M. L.; MALERBI, F.; CEDENHO, A. P. Estudos de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 231-239, 2012.

MOURA, A. et al. Concerns with educating the public about donating and receiving gametes. Eur J Contracept Reprod Health Care, v. 24, n. 6, p. 420-421, 2019.

OLIVEIRA, S. K. P. et al. Temas abordados na consulta de enfermagem: revisão integrativa da literatura. Rev Bras Enferm, v. 65, n. 1, p. 155-61, 2012.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAUDE (OMS). Infertilidade. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/infertility. Acesso em: 10 jan. 2022.

SILVA, M. C. F.; DANTAS, C. H. F.; FERRAZ, C. V. O dilema da “produção independente” de parentalidade: é legítimo escolher ter um filho sozinho?. Revista Direito GV [online], v. 14, n. 3, 2018.