Dentre os diversos possíveis temas a serem abordados sobre gestão de um laboratório de reprodução humana assistida, um me chamou a atenção na conversa que tive com a Dra. Maria Cecília Cardoso, da clínica Vida. Um assunto corriqueiro que todos sabem da sua importância e urgência, mas a maioria prefere não sair da sua zona de conforto quando se trata de resolver. Não estou falando sobre qualidade laboratorial, taxas de sucesso, novas técnicas ou, até mesmo, os “pulos-do-gato” que só o tempo ensina, e sim de algo que é, na maior parte do tempo, menosprezado por todos nós: o lixo. O assunto pode, à primeira vista, não parecer importante, mas é o início de uma discussão muito fértil para um tema de importância global.
Em qualquer laboratório de reprodução humana assistida temos uma demanda clássica que é sempre bem cumprida: o destino do lixo infectante. Restos de punções foliculares, de amostras seminais, de corantes, meios de cultivo, enfim, fluidos orgânicos ou qualquer material que entre em contato com eles e que são tratados como produtos potencialmente contaminantes. Historicamente este lixo recebia o seguinte tratamento: a incineração. No entanto, em alguns estados, como acontece no Rio de Janeiro, onde não é permitido a emissão de fumaça orgânica proveniente da incineração, o lixo hospitalar passa por um tratamento com substâncias descontaminantes. O destino do lixo hospitalar (ou potencialmente infectante) é bem definido: existem empresas especializadas, sacos diferenciados, veículos apropriados e equipes treinadas especialmente para esse fim. No entanto, o produto de tal tratamento, acaba também nos aterros sanitários.
Mas, e quando falamos sobre o lixo proveniente das embalagens dos produtos laboratoriais? Montanhas absurdas de plásticos, papeis e outras texturas que nem conseguem ser recicladas? Nossa consciência ambiental deve ser deixada de lado uma vez que já depositamos no saco de lixo infectante o material orgânico que passa pelas nossas mãos? A resposta é simples e direta: não. Não estamos mais na revolução industrial, na era dos processos megalomaníacos, dos gigantismos. Estamos na era da consciência ambiental, do minimalismo, da otimização, da eficiência e da eficácia. O momento é de olhar para frente, para o nosso futuro, para o futuro dos bebês que ajudamos a chegar a esse mundo. E, para quem ainda não entrou nessa onda, está na hora de entrar.
Nosso bate-papo ocorreu como uma conversa fluida e diversas questões foram levantas para buscar entender como a metodologia e a consciência ambiental podem ter espaço em um trabalho onde a tecnologia vem em primeiro lugar. Aqui resumi parte da nossa conversa que, espero, nunca ter um fim.
– Pelo lado pessoal e pelo lado profissional, como e quando a conscientização ambiental começou a chamar sua atenção? Sempre me incomodou essa coisa das pessoas “lavarem as mãos” depois que jogam o lixo dentro do saco plástico, como que dizendo: “a partir de agora o problema é do lixeiro”. Ao começar trabalhar com Reprodução Assistida, há 30 anos atrás, tinha a convicção de que estas crianças tão desejadas, planejadas, geradas com tanto cuidado e após tanto sacrifício financeiro e emocional, teriam um diferencial lá na frente. Quando nasceram meus netos, comecei a me preocupar seriamente com o tipo de mundo que eles e todas estas crianças que ajudo a nascer, iriam ter no futuro, quando eu não mais existisse e elas estivessem protagonizando.
– Acha possível que mudanças comportamentais em pequenas empresas, como os serviços de reprodução humana assistida, possam gerar efeitos maiores? Acho que pelo menos deveríamos dar o exemplo. Da mesma forma, as indústrias produtoras de insumos para nossa atividade, também deveriam se preocupar produzindo suas embalagens com produtos de fácil reciclagem ou mesmo gerar um programa de logística reversa para determinados produtos como o óleo mineral, por exemplo, que são descartados aos litros diariamente e que invariavelmente vão acabar em nossos rios e oceanos.
– Como incentiva a diminuição da produção de resíduos dentro do ambiente de trabalho que gerencia? Na correria da rotina diária, é muito mais fácil ir jogando todo o lixo dentro de um saco só e despachar como lixo hospitalar. Separar lixo dá muito trabalho e consome tempo. Procuro estar sempre educando minha equipe neste sentido e procurando empresas de reciclagem que possam receber o nosso material limpo. Tenho a preocupação de separar todo o óleo dos cultivos celulares e descartá-lo pessoalmente junto com resíduos lubrificantes.
– Já tentou multiplicar essa ideia ao longo do convívio profissional com colegas de outras clínicas? Houve resistência ou boa aceitação? Ainda não, pois tenho um dever de casa ainda extenso pela frente. Quero dar o exemplo e demonstrar soluções práticas. Obviamente já conversei com muitos e todos tratam o assunto com simpatia. O difícil é colocar em prática e “arregaçar as mangas” para uma ação efetiva.
– Já refletiu sobre ações que estão acima de você, como dos órgãos regulatórios, que poderiam auxiliar na diminuição da produção de resíduos dentro dos laboratórios? Com certeza. A grande preocupação com contaminação dos embriões e contaminação cruzada entre células de diferentes pacientes faz os órgãos regulatórios imporem regras que só geram mais lixo, mas absolutamente não protegem os embriões de nada. A embalagem individual de cada placa de cultivo é um exemplo disso. Tratar um serviço de Reprodução Assistida como qualquer unidade hospitalar é um outro grande desperdício. Nós somos mais limpos que qualquer edifício residencial, pois absolutamente não tratamos de pessoas com doenças infectocontagiosas: qualquer doença do tipo ou infecção aguda é impeditiva de tratamento para engravidar. As regulamentações deveriam se atualizar permanentemente em evidências também atuais e não em modelos de 20, 30 anos atrás, quando os processos tinham metodologias totalmente diversas: as doenças sexualmente transmissíveis são um exemplo disso.
– Em um mundo ideal, como imagina esse gerenciamento de resíduos dentro de um laboratório para ser sustentável? Primeiramente na formação dos profissionais de como se dá a contaminação vertical e cruzada. A desinformação, o medo e os “achismos” é que na verdade são os nossos maiores inimigos. Em segundo lugar, precisaríamos sensibilizar a indústria. Por último, destacar o impacto ambiental do nosso trabalho em cada normativa e regulamentação emitida pelos órgãos reguladores. Temos que gerar menos lixo e destinar corretamente o lixo de produzimos.