Por Maíra Casalechi
Desde 1988, quando a atual constituição brasileira foi promulgada, a saúde se tornou um direito de todos e um dever do Estado, representando uma conquista importante para a sociedade brasileira. Consequentemente, tornando esse direito uma realidade, o Sistema Único de Saúde –o SUS –, o maior e mais complexo sistema de saúde público, foi criado em 1990.
O SUS, em toda sua grandiosidade, pode ser dividido em diferentes estruturas e categorias. Considerando o grau de complexidade dos seus procedimentos, podemos dividi-lo em: atenção primária (promoção e proteção à saúde); atenção secundária (atendimentos especializados ambulatoriais ou hospitalares); e atenção terciária (procedimentos altamente especializados –incluindo aqui os tratamentos e técnicas da Reprodução Humana Assistida). Por outro lado, podemos subdividir o SUS de acordo com as estratégias de atenção direcionadas para a garantia dos direitos da saúde. Essas, muito mais diversificadas, são estruturadas de acordo com as várias frentes de ação do Ministério da Saúde, que podem ser destinadas às Mulheres, aos Homens, aos Idosos, aos Povos Indígenas, à População LGBTQIA+. Cada uma dessas frentes possui alguns direitos específicos que visam garantir o acesso integral e amplo à saúde. Dentre esses direitos, temos os Direitos Reprodutivos e Sexuais.
Os Direitos Reprodutivos e Sexuais fazem parte da gama de Direitos da Saúde, de acordo com o Art. 226 § 7ºda nossa Carta Magna. Esses direitos têm como objetivo garantir que os cidadãos brasileiros desfrutem de um bem-estar social, físico e mental que vá além da ausência de doenças no sistema reprodutivo, em seus processos e suas funções. E, para alcançar esse bem-estar, o acesso a todas as condições necessárias para se ter uma vida sexual prazerosa e segura, através de informações sobre a sexualidade e sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, deve ser garantida. Mais do que isso, esses direitos vieram para garantir a liberdade de decidir sobre ter ou não ter filhos e, considerando a decisão de tê-los, poder escolher quando, como e quantos ter. Ou seja, garantem o acesso ao planejamento familiar.
Baseado nisso, desde 1996, a Lei nº 9.263 prevê o planejamento familiar como um direito de todo cidadão brasileiro. Essa lei estabelece todas as ações que regulam a fecundidade, de maneira a garantir direitos iguais para a limitação ou o aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal, considerando as diferentes necessidades de cada indivíduo. Além disso, a Lei diz que “a assistência em planejamento familiar deve incluir a oferta de todos os métodos e técnicas para a concepção […] cientificamente aceitos”. Conclui-se então que o Estado brasileiro tem como dever propiciar recursos a fim de garantir a promoção da gestação e da prevenção da infertilidade. Em outras palavras, o estado tem como dever garantir o acesso às técnicas de Reprodução Humana Assistida.
Entretanto, apesar do requinte da nossa legislação, será que a população consegue ter acesso a tratamentos gratuitos de Reprodução Assistida? Será que há locais, em quantidade adequada, para o acolhimento de quem sofre com infertilidade ou para quem precisa preservar a fertilidade? Será que há recursos sendo direcionados para a garantia desses direitos? E, talvez, o mais importante: A sociedade está ciente sobre a existência desses direitos?
Atualmente, apenas sete centros de Reprodução Humana Assistida prestam atendimento gratuito em seis, dos 26(!), estados da federação (Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo) e no Distrito Federal. Eles estão, em sua maioria, localizados em hospitais universitários, em cidades de grande porte, que são vinculados ao Sistema Único de Saúde. Esses serviços, além de prestarem atendimentos gratuitos e de qualidade para a população, são importantes centros de pesquisa, ensino e extensão. Ou seja, auxiliam pacientes que tentam engravidar ou precisam preservar a fertilidade de forma gratuita, formam novos profissionais e participam do desenvolvimento científico e tecnológico nacional. Entretanto, ainda com todos seus benefícios sociais, essas instituições ainda não recebem repasses governamentais pelos procedimentos específicos realizados –como FIV/ICSI, IIU, punção ovariana, rastreio de ovulação e, até mesmo, pelas consultas para investigação da infertilidade –uma vez que tais procedimentos não foram tabelados e reconhecidos como parte dos tratamentos oferecidos pelo SUS. Dessa forma, cabe às instituições, em que os centros estão localizados, fornecer a estrutura, os materiais e a mão-de-obra necessária para mantê-los funcionando, sem receber o devido reembolso por isso.
Em 2004, quase 20 anos após a criação do SUS, foi convocado um grupo de trabalho para elaboração de uma proposta de regulamentação da Reprodução Humana Assistida no setor público. Como consequência, uma importante Portaria (nº 426/GM, de 22 de março de 2005) veio instituindo a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida no Âmbito do SUS, criando uma expectativa de que, finalmente, haveria repasses adequados e que esses atendimentos específicos seriam realizados pelo SUS. Infelizmente, por falta de recursos financeiros e por gestores da saúde considerarem que Reprodução Assistida não deveria ser uma prioridade do SUS, essa Portaria foi revogada.
Em 2012, uma nova Portaria (nº 3.149, de 28 de dezembro) reconhecendo a necessidade do atendimento especializado para tratar casos de infertilidade foi instituída. Por meio dela, houve a “destinação de recursos aos estabelecimentos de saúde que realizavam procedimentos de atenção à Reprodução Humana Assistida, no âmbito do SUS”. Apesar de parecer um avanço, o total dos recursos financeiros destinados foi de uma parcela única de 10 milhões de reais, que foi dividido entre oito centros especializados que estavam em atividade na época. Entretanto, apesar de os recursos terem sido bem aproveitados pelos gestores das instituições beneficiadas, avaliando os custos envolvidos nesse tipo de serviço, a verba não foi suficiente para financiar os tratamentos por muito tempo. Considerando o Laboratório de Reprodução Humana Assistida do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (LRH-HC/UFMG), o centro público de Reprodução Assistida localizado em Belo Horizonte/MG, estima-se que o recurso recebido, R$1.500.000,00, tenha sido suficiente para manter o serviço por 13 meses, desconsiderando os custos com a mão-de-obra dos profissionais ali atuantes.
Independente do recebimento específico dos recursos via SUS, graças a muito jogo de cintura e negociações por parte de seus gestores, centros públicos de reprodução assistida seguem atuando. No LRH-HC/UFMG, por exemplo, milhares de ciclos de FIV foram realizados, dezenas de milhares de pacientes foram atendidos e centenas de crianças nasceram graças aos tratamentos ali prestados desde sua inauguração, há mais de 30 anos. Anualmente, esse serviço segue oferecendo mais de 150 ciclos de alta complexidade (FIV/ICSI), mais de 200 de baixa complexidade (coito programado e IIU) e mais de 1.500 consultas e exames. Somados, quase 1.000 pacientes são atendidos todos os anos. Entretanto, a demanda pelo serviço consegue ser muito maior do que a oferecida. Todos os anos cerca de 400 novos casais são encaminhados para a instituição para realização de procedimentos de alta complexidade, 300 a mais do que a capacidade de atendimento atual, levando a um aumento contínuo da fila de espera. Apesar de cada instituição definir seus próprios critérios de elegibilidade para atendimento aos pacientes –como idade máxima para iniciar o tratamento –e da forma de cadastro no serviço –se via fila única ou via central de marcação, por exemplo –a alta demanda, gerando longas filas de espera, é um problema recorrente. Contudo, considerando que os problemas relacionados à infertilidade conjugal são, muitas vezes, tempo-sensíveis, é justo que esses pacientes esperem tanto tempo para ter acesso ao tratamento?
Paradoxalmente, o LRH-HC/UFMG, assim como outros centros públicos, possui uma infraestrutura física para, pelo menos, dobrar os atendimentos. Infelizmente, a ausência de recursos financeiros por parte do SUS torna essa opção inviável e as filas mantêm-se longas. Dessa forma, muitos pacientes que aguardam o procedimento não conseguirão ser atendidos antes de tornarem-se inelegíveis ao tratamento, seja pela idade ou pela falência ovariana. Mais do que isso, considerando que um ciclo de FIV/ICSI custa, num serviço particular, a partir de R$15.000,00 e que a renda domiciliar per capita do Brasil em 2019 foi de pouco mais de R$17.200,00 (anual) –segundo o IBGE –a grande maioria dos pacientes não possui os recursos necessários para buscar atendimento privado, mesmo em clínicas que oferecem tratamentos de baixo custo, ficando sem acesso ao tratamento adequado.
Quem perde com isso? Os pacientes, por não conseguirem exercer a desejada parentalidade; a economia, com a diminuição da produtividade desses pacientes que, muitas vezes, passam por sofrimentos psicológicos, intimamente relacionados ao diagnóstico de infertilidade somado ao tratamento inalcançável; o Estado, que não receberá os impostos das crianças que estão deixando de ser geradas nos dias atuais –valor esse superior ao que precisaria ser investido para viabilizar o tratamento de Reprodução Assistida; a indústria farmacêutica, ao deixar de comercializar medicamentos para um grupo de pacientes que não recorre a outros serviços para tratamento; e a sociedade, já que negar um direito baseado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável é negar a humanidade a um cidadão.
O acesso à Reprodução Humana Assistida é um direito constitucional e, apesar da carência de recursos, as instituições vinculadas ao SUS seguem prestando excelentes atendimentos embora em número bem abaixo comparando à demanda. Entretanto, sempre haverá espaço e desejo, por parte dos profissionais desses serviços, para que a situação melhore e que mais casais possam ser atendidos e alcancem o sonho do bebê em casa. Talvez seja necessária uma maior cobrança, por parte da sociedade, para que os governos repassem recursos adequados destinados aos serviços de Reprodução Assistida, assim como pela inclusão na tabela do SUS desses procedimentos específicos. Para além disso, outras maneiras de aumentar a oferta de atendimentos gratuitos, ou mesmo a baixos custos, devem ser exploradas, pelo menos para suprir a demanda dos pacientes que não têm a opção de recorrer aos atendimentos particulares.
Parcerias público-privado; credenciamento de serviços para prestação de serviços ao SUS; reembolso para famílias de baixa renda que realizarem tratamentos no setor privado. Essas são algumas opções que já vêm solucionando problemas em outras áreas da saúde há anos, no Brasil ou no exterior, e não há justificativa para não serem consideradas na Medicina Reprodutiva nacional. Entretanto, o mais importante, a princípio pelo menos, é a ampla conscientização da população acerca desse direito constitucional: todos os brasileiros têm o direito de acesso a um planejamento familiar adequado e individualizado, incluindo todas as técnicas e métodos para concepção cientificamente aceitos, incluindo aqui todas as tecnologias da Reprodução Humana Assistida. Parafraseando Rui Barbosa, para lutarmos pela garantia dos nossos direitos, devemos, sobretudo, conhecê-los.
– Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: uma prioridade do governo/Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção, Departamento de Ações programáticas Estratégicas -Brasília: Ministério da Saúde, 2005.