Autores: Gabrielle de Almeida Ferreira 1, Milena Bastos Brito1,2
¹Departmento de Ginecologia e Obstetrícia, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia, Brasil
² Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMPS), Salvador, Bahia, Brasil
* Autor de correspondência: Milena Bastos Brito, MD, PhD. Professor Adjunto
Av. Dom João VI, 256, Brotas. CEP: 41830-465 Salvador-Bahia, Brasil
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Introdução
A contracepção é uma preocupação para muitas mulheres em idade reprodutiva, e a escolha do método contraceptivo ideal envolve considerar diversos fatores, incluindo eficácia, segurança, eventos adversos e impacto na fertilidade futura. O dispositivo intrauterino (DIU) é o método de contracepção de longa ação reversível mais amplamente utilizado em todo o mundo, devido a sua alta eficácia, segurança, facilidade de uso e custo-benefício (1). Contudo, uma questão recorrente entre as usuárias e os profissionais de saúde é se o uso do DIU pode afetar negativamente a fertilidade a longo prazo.
No mundo, cerca de 14,3% das mulheres entre 15 e 49 anos que possuem parceria sexual, utilizam contracepção intrauterina (2). No entanto, existe uma ampla variação de número de usuárias entre os países e continentes, sendo de 1,8% na Oceania a 27,0% na Ásia (2). No Brasil, cerca de 2-4% da população está em uso de DIU (2,3).
Existem dois tipos principais de DIUs: o DIU não-hormonal e o DIU hormonal. O DIU não-hormonal, tem como mecanismo de ação local a liberação de íons de cobre, que são tóxicos para os espermatozoides e óvulos, prevenindo a fertilização, também causa uma reação inflamatória local no endométrio, criando um ambiente hostil à sobrevivência de espermatozoides e óvulos e, além disso, o cobre altera a composição do muco cervical, dificultando a migração dos espermatozoides (1, 4). Já o DIU hormonal libera levonorgestrel (LNG), e tem como mecanismo de ação principal o espessamento do muco cervical, dificultando a fertilização (1, 5). Os DIUs hormonais têm pouco ou nenhum efeito no eixo hipotálamo-hipófise-ovário, as concentrações séricas de estradiol são normais e a maioria das usuárias mantêm ovulações (>75%), com maior incidência de ovulação nos DIUs com doses mais baixas de LNG (6, 7). O DIU com 19,5 mg de LNG mantém taxas de ovulação superiores a 88,5%, atingindo 100% no terceiro ano de uso. Já o DIU com 52 mg de LNG apresenta taxas crescentes de ovulação, de 76,5% no primeiro ano a 98% no terceiro (8).
Os estudos mostram que ambos os tipos de DIUs são altamente eficazes na prevenção da gravidez, com taxas de falha inferiores a 1% ao ano para uso típico e/ou perfeito. O índice de Pearl (taxa de falha por 100 mulheres durante 12 meses de exposição ao método) para o DIU hormonal é de 0,2% para o uso habitual e uso ideal. Já o DIU não hormonal, o Índice de Pearl foi de 0,8% para o uso habitual e 0,6% para o uso ideal. Essa alta eficácia contribui para a popularidade do DIU como contraceptivo reversível de longa ação (9).
Apesar das informações sobre ovulação e níveis de hormônios endógenos relatados, persistem preocupações sobre o potencial impacto negativo do DIU na fertilidade futura. Cerca de 37% das mulheres temem que o seu uso prolongado possa interferir na sua fertilidade, o que pode vir a ser uma barreira ao uso desse eficaz método contraceptivo (10).
Considerando as dúvidas de muitas mulheres e profissionais de saúde sobre o impacto do DIU sobre a fertilidade futura, este boletim pretende revisar os efeitos dos DIUs sobre o endométrio, o risco de doença inflamatória pélvica e o retorno à fertilidade.
DIU e Alterações Endometriais
As alterações endometriais e a janela de implantação (limitada a 6-8 dias após a ovulação) tem sido temas de diversos estudos para reduzir a taxa de falha de implantação embrionária em tratamentos de reprodução assistida. Como o mecanismo de ação dos DIUs inclui alterações endometriais, existe uma preocupação se após a sua remoção as alterações endometriais poderiam interferir na fertilidade futura (11).
Não existem estudos in vivo elaborados para avaliar os possíveis efeitos do DIU de cobre no endométrio a nível molecular. Pesquisas in vitro mostraram que, quando o cobre é adicionado às células estromais endometriais humanas decidualizadas em cultura, há uma interrupção na expressão gênica relacionada à receptividade endometrial. No entanto, é importante destacar que estudos in vitro podem não representar com precisão os processos biológicos que ocorrem in vivo, devido às diferenças no microambiente e na complexidade dos sistemas fisiológicos (12).
Além disso, foi observada a desregulação de vários genes conhecidos por estarem associados ao processo de decidualização, incluindo CXCL6, interleucinas e LIF (fator inibidor de leucemia). Notavelmente, 19 dos 49 genes afetados pelo DIU com cobre estão relacionados à via da endometriose. Sugerindo que a alteração no perfil de expressão gênica induzida pelo cobre pode explicar um dos principais efeitos colaterais desse DIU, o aumento do sangramento menstrual, por meio da modificação na microvascularização subendometrial (13).
Em relação ao DIU-LNG, um estudo que realizou biópsias do endométrio de usuárias deste contraceptivo demonstrou decidualização e atrofia sem relação com o tempo de uso ou a quantidade de LNG (13). Estudos mais recentes mostraram uma relação entre aumento na expressão dos marcadores de decidualização, IGFBP1 (Proteína de Ligação ao Fator de Crescimento Semelhante à Insulina 1) e prolactina, após a inserção do DIU-LNG. Isso coincidiu com evidências histológicas de decidualização estromal e atrofia endometrial nas mesmas amostras (14,15). Outro achado importante foi a redução na expressão dos receptores de estrogênio e progesterona no endométrio após a inserção do DIU-LNG, embora essa expressão tenha retornado aos níveis normais após 6 a 12 meses (15). Estudos sugerem que o retorno à estrutura e função normal do endométrio ocorre em até 30 dias após a remoção do DIU (16).
DIU e Infecções Pélvicas
Existia uma preocupação se a inserção ou o uso do DIU afetaria a ascensão de uma infecção do trato genital inferior para o trato genital superior, levando à doença inflamatória pélvica (DIP) e subsequente infertilidade. Ocorre que os fios dos DIUs disponíveis atualmente são todos monofilamentares, não permitindo ascensão de microrganismos (1,8).
Os fatores tubários são responsáveis por 25 a 35% dos casos de infertilidade feminina, sendo DIP a principal causa, implicada em mais da metade desses casos. O risco de disfunção tubária aumenta com episódios recorrentes de DIP e, após três infecções, mais de 50% das mulheres apresentam comprometimento tubário (17). Embora os DIUs comercializados no passado tenham sido associados a infecções pélvicas, evidências atuais demonstram que o risco é semelhante ao da população não usuária de DIU, especialmente quando inseridos com técnica adequada e pelos fios serem monofilamentares (18, 19).
Revisão sistemática avaliando segurança do uso dos DIUs, evidenciou ausência de diferenças na incidência de DIP entre jovens usuárias de DIU em comparação com jovens usuárias de contraceptivos orais combinados ou implantes de etonogestrel (ENG). Os autores concluem que o risco de DIP é baixo e não é clinicamente significativo entre jovens usuárias de DIUs (20).
O agente infeccioso mais comumente identificado na DIP é a Chlamydia trachomatis. Um estudo retrospectivo, que incluiu 57.728 inserções de DIUs, investigou a relação entre o rastreamento para Chlamydia trachomatis e Neisseria gonorrhoeae e o risco de DIP após a inserção. O risco global de DIP observado foi de 0,54% (intervalo de confiança [IC] de 95%: 0,48–0,60%). Não houve diferença significativa no risco de DIP entre mulheres rastreadas previamente e aquelas que não foram rastreadas (diferença de risco: –0,0034; IC 95%: –0,0045 a –0,0022). Esses achados reforçam a segurança da inserção do DIU mesmo na ausência de rastreamento prévio para clamídia ou gonococo (19). O risco de DIP parece ser maior nas primeiras três semanas após a inserção do DIU, mas ele é bem baixo (<1% das usuárias de DIUs). Portanto, a inserção adequada e o manejo correto de possíveis casos de DIP permite a continuidade do uso do dispositivo e redução de efeitos adversos (8, 21, 22).
Retorno da Fertilidade após Remoção do DIU
Uma preocupação comum das mulheres em idade fértil é quanto tempo leva para que a fertilidade retorne após a remoção do DIU, já que grande parte das usuárias desse método possuem o desejo de engravidar a longo prazo. As evidências científicas atuais indicam que a fertilidade retorna rapidamente após a remoção do DIU. As taxas de gestação após 12 meses de remoção do DIU foram semelhantes as pacientes usuárias de DIU e as não usuárias (81% e 70% respectivamente, p= 0,18) (23).
Um estudo multicêntrico avaliou as taxas de retorno a fertilidade em pacientes usuárias de DIU de cobre e de DIU-LNG 52mg. A taxa de gestação após retirada do DIU de cobre foi de 71,2% após 12 meses e 79,7 após 24 meses. E, para o DIU-LNG a taxa foi de 79,1% após 12 meses e 86,6% após 24 meses. Não havendo diferença estatística significativa entre os grupos (24).
Uma coorte avaliou a associação entre o DIU e o retorno a fertilidade. O estudo acompanhou 461 participantes, sendo destas 275 com história de uso de DIU (59,7%). O tempo médio para a concepção foi de 5,1 meses para pacientes com história do uso do DIU e de 7,5 meses para pacientes sem uso prévio deste contraceptivo (25).
Uma metanálise que incluiu 14.884 mulheres que interromperam a contracepção demonstrou taxa combinada de gravidez de 83,1% (IC95%: 78,2-88%) nos primeiros 12 meses após a descontinuação do contraceptivo. Não houve diferença significativa entre os métodos hormonais e o DIU (26).
Dessa forma, a literatura cientifica evidencia que a fertilidade não é afetada pelo uso prévio de DIU. E, o tempo para gestar após a retirada do DIU é semelhante ao observado em não usuárias.
Considerações Psicológicas e Sociais
Além dos aspectos fisiológicos, é importante considerar os fatores psicológicos e sociais relacionados ao uso do DIU e à fertilidade. A ansiedade sobre a infertilidade pode ser uma barreira significativa para o uso de DIU. Programas de educação e aconselhamento são essenciais para ajudar as mulheres a tomar decisões informadas sobre seu planejamento familiar.
O aconselhamento eficaz deve incluir informações claras e baseadas em evidências sobre a reversibilidade do DIU e os riscos associados. Um estudo publicado em 2016 destacou que mulheres que receberam aconselhamento detalhado sobre os efeitos do DIU na fertilidade estavam mais satisfeitas com sua escolha contraceptiva e menos propensas a experimentar ansiedade relacionada à infertilidade (27).
Em muitas culturas, a fertilidade é um aspecto central da identidade feminina e da aceitação social. Portanto, é crucial que os profissionais de saúde considerem as implicações culturais e sociais ao aconselhar sobre o uso do DIU. A comunicação eficaz pode ajudar a dissipar mitos e equívocos, promovendo uma maior aceitação e uso do DIU como método contraceptivo (27).
A disseminação de informações através das mídias sociais também tem um impacto significativo nas percepções sobre o DIU. Um estudo recente identificou que 43,7% das mulheres tiveram orientação sobre contraceptivos na consulta, cerca de 37,1% não receberam orientação médica e 25,4% utilizaram as redes sociais para obter informações. Além disso, apenas 0,79% acreditam apenas no médico para obter informações (28). Por isso, é crucial que profissionais de saúde usem essas plataformas para fornecer informações precisas e baseadas em evidências.
Conclusão
As evidências disponíveis até o momento indicam que o uso do DIU, seja de cobre ou hormonal, não tem impacto negativo na fertilidade após a sua remoção, tanto em curto quanto em longo prazo. A fertilidade geralmente retorna rapidamente após a retirada do dispositivo, permitindo que as mulheres engravidem em um intervalo de tempo semelhante ao daquelas que nunca utilizaram esse contraceptivo.
Embora a DIP seja uma importante causa de infertilidade tubária, o risco de sua ocorrência em usuárias de DIU é extremamente baixo, especialmente com os dispositivos modernos, inseridos com técnica adequada e que apresentam fios monofilamentares. Além disso, estudos demonstram que a inserção do DIU é segura mesmo sem rastreamento prévio universal para clamídia e gonococo.
Portanto, o DIU continua sendo uma opção contraceptiva segura e eficaz para mulheres que desejam prevenir a gravidez temporariamente, sem comprometer sua fertilidade futura.
Referências
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