Autora do comentário: Lucia Alves da Silva Lara
A diversidade de gênero representa cerca de 2% da população mundial caracteriza-se por não identificarem-se com o seu sexo de nascimento. Esta população representa os Transgêneros (trans), e enfrenta sérios problemas de marginalização no convívio social, nas escolas, nos espaços públicos e privados e nas instituições de saúde. O desconforto com o corpo (disforia), gera sofrimento e pode chegar aos extremos da mutilação e às tentativas frequentes de suicídio. Portanto, essas pessoas demandam cuidados de profissionais de saúde, especialmente médicos, para manejo de esteroides sexuais em altas doses e para realizar cirurgias para adequação do corpo ao gênero ao qual elas se identificam.
Os movimentos sociais pró-inclusão, e o avanço da ciência promovendo o conhecimento sobre as necessidades especificas dessa população no âmbito social e da saúde, vem contribuindo para proporcionar visibilidade e melhores cuidados em saúde e bem estar aos Transgêneros. Uma conquista recente no Brasil, é a possibilidade de pessoas trans constituírem suas famílias através da utilização das técnicas de reprodução assistida (RA). Para proporcionar este cuidado, o médico precisa conhecer amplamente o efeito da terapia hormonal de afirmação de gênero (THAG) e da cirurgia de afirmação de gênero (CAG) na capacidade reprodutiva dessa população. A THAG para a mulher trans pode levar a redução parcial ou eliminação permanente do seu potencial de fertilidade. Da mesma forma, a CAG elimina, permanentemente, a possibilidade do homem ou da mulher de constituírem uma prole com seus traços genéticos. Sendo assim, o aconselhamento reprodutivo para esta população é essencial, antes de iniciar qualquer procedimento, seja clinico ou cirúrgico.
A prevenção da infertilidade induzida por procedimentos médicos é uma necessidade urgente em qualquer contexto clínico e a preservação da fertilidade (PF) por meio de criopreservação de gametas ou embriões é o recurso disponível. No entanto, os dados sobre a PF nesta população ainda são limitados, e a maioria, deriva da PF em pacientes oncológicos. E é preciso ressaltar que são poucos os serviços que oferecem este recurso e, a PF para a população trans ainda é incipiente no Brasil. O desconhecimento das demandas específicas desta população e o julgamento dessa demanda como sendo de caráter “social” (não prioritária), impedem que PF seja discutida e oferecida aos transgêneros na rede pública. Já a decisão da pessoa trans para buscar o recurso de PF é influenciada pela opinião das pessoas e por fatores como a importância de ter filhos da própria genética, disposição para adiar a transição, recurso financeiro, entre outros (1).
Apenas uma pequena parcela (7%) da população trans recebe orientação sobre PF e realiza o congelamento de gametas, enquanto que, 95% reconhece que a PF deveria ser oferecida a todas as pessoas trans e não-binárias. A falta de conhecimento sobre a existência deste recurso é a principal barreira para que as pessoas trans busquem a PF. Sendo assim, os médicos deveriam, de rotina, informar aos trans os riscos da THAG e CAG para seu potencial reprodutivo e as opções de tratamento relacionadas à preservação da fertilidade.
O estudo “Fertility preservation decision making amongst Australian transgender and non-binary adults” (2) teve como objetivo discutir as opções de preservação da fertilidade para indivíduos transgêneros.
Para homens trans, os estudos com pequena casuística evidenciam que, independente de descontinuar ou não a THAG com testosterona (T) em altas doses, o número de oócitos captados é favorável. A análise do cúmulos do oócito e do fuso meiótico obtidos de homens trans tratados com T em longo prazo não evidenciou alteração. No entanto, ainda são necessários mais dados sobre a qualidade oocitária, os resultados da gravidez e os desfechos de longo prazo de crianças nascidas a partir de óvulos recuperados por estimulação ovariana em interrupção de curto prazo da T. Também não há dados sobre a necessidade ou não de descontinuação da T para a PF através do congelamento de óvulos.
Outra alternativa é a criopreservação de embriões utilizando óvulos a fresco ou criopreservados, fertilizados com espermatozóides de um parceiro ou doador. Uma das vantagens dos embriões criopreservados sobre criopreservação de óvulos, é a possibilidade de progressão dos embriões até blastocistos, com maiores taxas de sucesso reprodutivo em relação às taxas de gravidez por oócitos vitrificados.
A criopreservação de tecido ovariano obtido no momento da realização da CAG é outra possibilidade para o homem trans. Os óvulos derivados deste tecido poderão ser fertilizados pelos espermatozóides do parceiro ou de doador, e os embriões transferidos para o útero de uma doadora solidária. Para o homem trans com uma parceira feminina, a fertilização in vitro pode ser realizada com os seus óvulos maduros fertilizados com espermatozóides de doador, e o embrião transferido para o útero da parceira.
Para a mulher trans, a THAG com estrogênio (estradiol) e antiandrogênicos resulta na supressão da espermatogênese e alterações morfológicas nos testículos. A avaliação histológica dos testículos evidencia bloqueio da espermatogênese em 2/3 das mulheres trans e espermatogênese parcial em menos de 1/3 delas. Observa-se também regressão das células de Leydig e Sertoli para seus precursores imaturos e aumento de apoptose com reparação por fibrose testicular levando a uma redução do volume dos testículos. Ainda não se sabe quais são os potenciais fatores de risco associados a essas alterações.
A primeira opção de PF para a mulher trans é realizar a criopreservação do esperma, antes de iniciar a THAG. A qualidade do esperma criopreservado antes da THAG é superior ao esperma criopreservado após a descontinuação da THAG, o que sugere a irreversibilidade do seu efeito deletério na qualidade seminal. Para a mulheres com disforia para coleta do sêmen por masturbação a eletroejaculação e a estimulação vibratória peniana podem ser úteis nesses casos. As técnicas de aspiração transcutânea ou a extração microcirúrgica de espermatozoides devem ser reservadas para as mulheres com disforia para ejaculação e para azoospérmicas.
Atualmente, a criopreservação de tecido testicular é o único método disponível de preservação da fertilidade para meninas transgênero pré-púberes, mas ainda é experimental e requer autotransplante para o testículo, escroto ou locais anatômicos subdérmicos ectópicos. Uma perspectiva futura é o uso de células-tronco para o desenvolvimento de espermatogônias. Em todos estes casos, a mulher trans que não tem uma parceira feminina depende de útero de doadora solidária para gerar seus filhos. Uma perspectiva futura é o transplante uterino para que a mulher trans possa engravidar.
Referência
- Riggs DW, Bartholomaeus C. Fertility preservation decision making amongst Australian transgender and non-binary adults. Reprod Health. 25 de outubro de 2018;15(1):181.
- Mattelin E, Strandell A, Bryman I. Fertility preservation and fertility treatment in transgender adolescents and adults in a Swedish region, 2013-2018. Hum Reprod Open. 2022;2022(2):hoac008.