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Comitê: Psicologia

Transgênero – Bate Papo com Dr. Alexandre Saadeh, Vanya Dossi e Cássia Avelar

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Médico psiquiatra e psicoterapeuta. Psicodramatista. Doutor pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Professor Doutor, do Curso de Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP. Médico Supervisor do Serviço de Psicoterapia do IPq-HCFMUSP. Coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) do IPq-HCFMUSP.

– Dr. Alexandre como foi o seu percurso até chegar nesse trabalho no AMTIGOS – Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual?

Dr. Alexandre: Desde 1993 eu trabalho com essa população aqui no IPQ (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas – SP). A princípio a gente simplesmente oferecia psicoterapia, que não era, e ainda não é, o grande desejo dessa população. Na época eram somente adultos. Em 1997 saiu a 1ª Resolução do Conselho Federal de Medicina, e os/as transexuais começaram a procurar, a demanda aumentou e então estruturamos o Ambulatório no Instituto, mas era basicamente para a população adulta – homens e mulheres trans e eu coordenei bastante tempo.

– E eles chegavam com a decisão tomada, por vezes já tendo até realizado intervenções inapropriadas?

Dr. Alexandre: Sim, muitos. Faziam uso de hormônios por conta própria, usavam silicone industrial, as mulheres trans tentavam extirpar o testículo, umas questões bem graves. Eu saí do ambulatório do IPQ em 2007 e montei o AMTIGOS em 2010, para a população adulta. Mas uma coisa que sempre me chamou a atenção era que 99% dos adultos diziam que tudo começou na infância, e falavam dos sofrimentos que tiveram, na infância e na adolescência; mas na época não atendíamos crianças e adolescentes. No final de 2010 chegaram os primeiros adolescentes com 17 anos e no final de 2011 a primeira criança, com 4 anos. E aí deu início a um novo trabalho. Era uma população que queríamos conhecer, existem uns trabalhos lindos na Holanda, no Canadá, nos EUA – centros de acompanhamento para essa população infantil e adolescente, e no Brasil não tinha nada. Quando a demanda apareceu e foi aumentando exponencialmente, acabamos fechando a triagem para a população adulta e continuamos com crianças e adolescentes. Hoje temos na fila de espera para triagem um total de 160 crianças e adolescentes. A demanda cresceu tanto que em fevereiro deste ano fechamos provisoriamente para os adolescentes.

– Então hoje o foco é para a criança?

Dr. Alexandre: Sim, nosso foco maior está com as crianças. Desejamos reabrir para adolescentes, que é uma população ainda muito largada e de risco. Na realidade são três populações diferentes em tudo, em demanda e em ação: crianças, adolescentes e adultos. Eu falo que com adultos fazemos uma reparação, por que a mudança corporal, a não inserção social, a marginalidade já existiu. Criança é uma população muito específica, por que não é a criança que busca o ambulatório, é a família. E isso para nós é um dado extremamente positivo, por que se as famílias já têm esse olhar, esse cuidado, já revela uma certa aceitação, porque existem muitas famílias resistentes.

– E os pais sabem lidar com esta questão?

Dr. Alexandre: Tem famílias que vem buscando ouvir esse não: “não é nada disso não, pode dar uma surra, que isso é coisa do demônio, faz um exorcismo…”. A família vem buscando isso, querendo ouvir isso: “Olha, a gente trouxe, mas a gente não acredita que seja” – aí você vira e fala assim “Olha, pode ser, a gente vai ter que acompanhar para ver”.

– Em qual faixa etária é mais comum que se perceba a incongruência de gênero? Quais são os principais indícios? Como diferenciar a fase de fantasia da identidade de gênero?

Dr Alexandre: As crianças menores, de 3/4 anos até os 6 anos, são um pouco mais difícil, por que o universo de fantasia é muito grande e elas vivenciam isso de maneira integral. O que tentamos diferenciar é, por exemplo, um encantamento pelo feminino do que é acreditar e ser uma menina, e vice-versa. Então eu uso três expressões que são muito importantes: quanto mais persistente, consistente e insistente for essa criança na sua definição, maior é a probabilidade de ser mesmo. Só que com criança a gente tem a sorte e o privilégio de não fazer nada a não ser acompanhar. Tem o tempo a favor para ela amadurecer. Então assim, dos 6 até os 8/9 anos é uma idade bem complexa. Se o meio não for tranquilo para lidar com essas questões de gênero e essa criança insista, ela encolhe para dentro quem é, e isso vai ter uma repercussão lá na frente. Se essas crianças de 9 até 11 anos confirmam que nasceram num corpo de menino, mas são meninas ou o contrário, aí a grande maioria não volta atrás. E a grande questão é o início da puberdade. Para nós é uma grande preocupação se uma criança tem uma questão de gênero e está começando a puberdade, por que se o corpo se transformar biologicamente, tiver os caracteres de desenvolvimento, os caracteres sexuais secundários, vai ser um drama para essa criança, vai ser um adolescente insatisfeito.

– Cria um conflito com a sexualidade e com a identificação?

Dr. Alexandre: Muito. Por exemplo, ter seios, por que é visível socialmente. Então o que a gente se preocupa é em bloquear esse tempo caso exista a suspeita de ser transgênero.

– O tratamento inicia aí?

Dr. Alexandre: Sim, por aí. É um tratamento hormonal que você bloqueia a puberdade, como faz com as meninas que tem puberdade precoce com 6 anos, bloqueia e ela vai continuar criança por um tempo maior e isso ajuda na definição. E aí, a partir dos 16 anos, tendo essa definição, entram com os hormônios definitivos, de acordo com a identidade de gênero que aquele adolescente tem. E na vida adulta vai ocorrer a transformação, a mudança de gênero com o qual se identifica.

Hoje nós temos uma única questão, estamos acompanhando 7 ou 8 crianças bloqueadas e que não podemos entrar com hormônio cruzado por uma série de quesitos éticos e institucionais, que determinam que é a partir dos 16 que se pode fazer. E então vem a grande questão, essas crianças bloqueadas, algumas no começo da puberdade, existe a possibilidade de ter o desenvolvimento de gametócitos, ou seja, espermatozoides e óvulos, por que o desenvolvimento da ogônia ou espermatogônia pode ter começado. Em outras crianças, se pegamos a puberdade já iniciada, não teremos isso, o que repercute na fertilidade, na procriação futura.

Na população adulta é diferente, essa passou pela puberdade e desenvolveu, tomou hormônio cruzado, mas manteve o potencial reprodutivo. Se essa for a opção, poderá coletar espermatozoides ou óvulos, e se é um homem trans, pode até engravidar.

 

– E então entrariam as técnicas de reprodução humana assistida?

Dr. Alexandre: Sim, se foram preservados os gametas, sim. Nota das entrevistadoras: Se o homem trans coletou óvulos e não retirou o útero, pode parar a testosterona e preparar a transferência de um embrião formado a partir daquele óvulo, com sêmen de doador. Existe a possibilidade do homem trans criopreservar os óvulos e depois de formado o embrião, transferir para o útero da parceira ou útero de substituição. A mulher trans, caso não tenha criopreservado o sêmen, e não tenha feito a modificação genital, interrompe o tratamento hormonal e pode coletar o sêmen através da masturbação ou punção testicular. O óvulo de parceira ou de doadora será inseminado com seu sêmen e transferido para o útero da parceira ou substituto.

– E caso já tenha optado pela modificação genital?

Dr. Alexandre: Se já fez a correção plástica do períneo, não tem como engravidar, por que geralmente se faz a retirada dos órgãos internos.

– Um homem trans, que preservou o seu ovário e vai gerar, como fica a condição de viver essa situação do feminino, da maternidade com a escolha que fez de ser homem. Você já acompanhou?

Dr. Alexandre: São situações muito específicas – homens trans que engravidam. Primeiro por que na cirurgia existe uma retirada (de ovário, útero). Nos EUA eles evitam retirar exatamente por isso, devido à procriação futura. Aqui no Brasil é mais comum a retirada e os pacientes concordam; existe uma diferença cultural, mas quando esses homens trans decidem engravidar, é transitório; são 36/40 semanas, e é por um vínculo afetivo, ou por que a parceira é estéril, ou por que a parceira não tem condições.

– Ou até por não ter uma parceira, por que as vezes não tem, não é? Ter a incongruência não quer dizer que a sexualidade acompanhe, a opção amorosa pode ser ou não pelo mesmo sexo. E alguns trans homem ou mulher não têm parceiros, o que não implica em não querer ter um filho…

Dr. Alexandre: Não mesmo, uma questão é ser transexual, outra questão é ser homossexual ou heterossexual. Tem casais de lésbicas em que uma é trans e a outra é cisgênero, então assim, tem muitos tipos. Agora, tem casais de homens gays também, que podem querer adotar, então são diversas variáveis…

– Uma mulher trans também, caso não tenha criopreservado o sêmen, terá que fazer a coleta do mesmo, entrando em contato com o órgão sexual masculino.

Dr. Alexandre: Sim, é a mesma situação, só fará se estiver envolvida emocionalmente e/ou tiver o desejo de ser mãe.

– Na sua experiência, após o processo de redesignação de sexo, o homem e a mulher trans rejeitam as características do sexo biológico?

Dr. Alexandre: Sim, exatamente, é muito particular, mas como falei, geralmente um homem trans quando engravida é por uma questão amorosa, afetiva, da relação do casal. Por ele, não engravidaria, mas se tem essa possibilidade alguns optam e depois, retiram o útero e trompas na cesárea. Outros optam pela adoção, por que não querem nenhuma ligação com o sexo biológico. E a mulher trans, idem, vai coletar o sêmen e pronto.

– A classe médica está preparada para fazer esse diagnóstico e diferenciar de outros transtornos de identidade, afastando outras psicopatologias que podem cursar com sintomas de identidade de gênero?

Dr. Alexandre: A grande maioria de pediatras, hebiatras e endocrinologistas sabem quando devem encaminhar para um diagnóstico diferencial.

– O seu serviço é uma referência, mas existe um Brasil enorme, vocês atendem pessoas só de São Paulo? Existem outros serviços em outros estados com estrutura para atender essa demanda? Como que é?

Dr. Alexandre: Para a população adulta tem estrutura, a maior parte das secretarias estaduais e municipais tem. Eu estive em Belo Horizonte em outubro de 2017 para uma palestra no ministério público, foi muito legal falar com os juízes, promotores e colaboradores. Todos os estados têm polos, núcleos de apoio ou de desenvolvimento para o adulto. Nem todos são reconhecidos pelo ministério da saúde e nem estão dentro do processo transexualizador. O ministério da saúde tem critérios para referenciar alguns serviços e o SUS paga pela consulta, pela terapia, por todas as intervenções. Hoje no Brasil temos nove centros referenciados, cinco com acompanhamento completo e quatro centros iniciais (Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo). Há mais ou menos dois/três anos começou em Recife, e tem hoje quatro serviços só ambulatoriais em Uberlândia, IED Rio de janeiro, CRT Santa Cruz, aqui da capital – São Paulo, e em Curitiba. Em Porto Alegre tem uma psiquiatra que trabalha com a população adulta, mas as crianças e adolescentes do Rio Grande do Sul não chegam por questões intrínsecas do funcionamento do sistema de saúde. Campinas abriu um ambulatório há um ano e meio.

Nosso grande problema é que o Brasil é uma grande colcha de retalhos, tem estados que tem mais verba, outros menos. Nesses últimos três anos eu tenho dado muitas palestras. São realidades muito diferentes, por exemplo, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, têm algumas vantagens. São Paulo, uma capital avançada, ainda deixa a desejar. Vejam, da população adulta que procurava o ambulatório em 1997, 85 a 90% se prostituiam. No último levantamento que eu fiz antes de fechar o ambulatório para adultos, da população que estava no ambulatório, 80% estava com a carteira registrada ou era profissional liberal. E os 15 a 20% que se prostituiam, ou eram de outro estado, ou do interior. A maioria da população que estava na cidade tinha a transcidadania – a prefeitura e o estado investiram, então hoje tem tudo validado.

 

– Nome social, alteração do registro?

Dr. Alexandre: Sim, tudo é validado. Tem lei estadual e municipal para isso. Então a cidade de São Paulo é um polo muito interessante. Mas estamos falando da “vila de São Paulo”, área do rodízio. Se você vai para a periferia, ainda tem muito preconceito, muita resistência, mas acredito que aqui ainda seja o melhor lugar para uma pessoa transexual viver. Outras cidades, como Palmas (TO), Belém (PA) a realidade é outra. O índice de prostituição é enorme, DSTs também, então falar sobre políticas transexuais para o Brasil como um todo é muito difícil, muito regionalizado, tem aspectos culturais que são muito interessantes. Eu fui dar uma palestra em Palmas, tem índios travestis e transexuais…

– Existe diferenciação com relação à aceitabilidade social de travestis e transexuais?

Dr. Alexandre: Nenhum é aceito. São reconhecidos, mas não são aceitos, ainda são muito discriminados.

– Mas parece que está mudando. Veja a condição dos casais homoafetivos, como já mudou; têm sido melhor recebidos por todos os profissionais, estão tendo uma aceitabilidade maior.

Dr. Alexandre: Vai mudar, é uma realidade, as famílias homoafetivas existem, as transafetivas também vão existir. É questão de tempo.

– Não é para ser questionado, não é?

Dr. Alexandre: Claro, existe a tecnologia? Por que não? As pessoas buscam.

– Os médicos, hoje em dia, encaminham? Eles sabem reconhecer quando devem encaminhar?

Dr. Alexandre: Sim, cada vez mais encaminham. Aqui no ambulatório recebemos muito, de pediatras, endocrinologistas, cirurgiões.

– E se não for para cá, eles sabem para onde encaminhar?

Dr. Alexandre: Para adultos tem vários centros no País que o ministério da saúde não reconhece, mas são ambulatórios que acompanham e que fazem o acolhimento a essa população. Cirurgias só nos centros referenciados. Crianças e adolescentes começou aqui, é pioneiro.

– Quando essa criança, esse adolescente vai começar a tomar hormônios para bloquear a puberdade e provavelmente perder sua fertilidade, isso é informado para eles, para a família? Como é a resposta dessas crianças? Quer dizer, eles podem não ter maturidade para compreender a dimensão disto no futuro, são os pais que acabam tomando essa decisão não é, como fica essa situação?

Dr. Alexandre: Sim, legalmente os pais são responsáveis por tudo que vai ser feito com essa criança. Eu enfrento, às vezes, quando dou uma palestra sobre as questões de identidade de gênero na infância, de crianças que eu olho e falo que 99% de chance de ser trans, por que é tão intenso, é tão nítido, e eu sou questionado se a criança tem competência para falar sobre isso. E aí eu sou muito direto. Por que que não teria? Quando um menino, que nasceu biologicamente menino e diz que é menino ninguém questiona, por que quando diz que é uma menina tem todo um questionamento sobre isso? E quando a criança fala sobre ela, ela está falando sobre ela. Acreditamos quando uma criança fala que tem dor, tem cólica, que está insone, e quando ela está fala de uma questão que é de identidade dela, então por que não levar isso em consideração? Só que tem distinções muito sutis, uma coisa é uma criança dizer que é uma menina ou um menino, outra coisa é dizer eu quero ser uma menina ou quero ser menino, é preciso entender o que ela está querendo dizer, é por que ela é? Ou é algo da fantasia? Ou já é real e ela sabe que vai ter que mudar o corpo dela? Então é sempre uma questão de ouvir o que a criança está dizendo ou afirmando, e é completamente diferente, tem que ouvir aquela criança.

– É muito particular e subjetivo, cada caso tem que ser analisado com cuidado, com muito critério, não é?

Dr. Alexandre: Tem que ouvir aquela criança. Mas é muito diferente uma criança dizer que quer comer chocolate antes do jantar, uma coisa é o desejo, uma vontade, outra coisa é quando ela está falando o que ela sente, o que ela é. São coisas distintas. Por que vivem comparando e me perguntam: “Uma criança dizer que é um cachorro, tudo bem para você?”, e eu respondo: “Numa brincadeira, ela pode dizer que é um cachorro, mas é uma brincadeira, aqui não estamos falando de uma brincadeira, estamos falando da existência de um ser humano que está se desenvolvendo”. Ela não tem competência de falar do que ela gosta, quem ela é, como ela se vê, como se sente? Claro que tem! É isso que tem que mudar na nossa escuta, dar uma certa autonomia.

– A diferença entre querer ser e dizer que é…

Dr. Alexandre: Exatamente, e mesmo querer ser, pode ser também, mas assim, o que ela está querendo dizer? É ouvir essa criança que está falando a respeito dela, e elas falam.

– Mas os pais têm dificuldade em diferenciar, a primeira vez que eu tive contato, a mãe não sabia o que era e como agir. Ela dizia que não era contra, só não sabia a quem procurar, como lidar com a situação. Ela buscava orientação.

Dr. Alexandre: Isso é interessante, os pais falam deles, da vergonha que eles têm, da dificuldade em saber como devem lidar. Pensam que são culpados, que incentivaram.

– E aí é muito complicado não é? Por que tem a angústia da família, a angústia da criança, e essa miscelânea toda até conseguir desfazer esses nós e poder ver o que está ali e como vai seguir.

Dr. Alexandre: E essa é uma preocupação nossa. O acompanhamento que a gente propõe não é só para a criança. No nosso ambulatório temos o acompanhamento para os pais, temos um grupo de família de crianças separado do grupo de família de adolescentes, por que as demandas são diferentes. E esse grupo de famílias de crianças sou eu que dirijo. Eu não abro mão disso.

– É essencial. E é fundamental esse trabalho com os pais.

Dr. Alexandre: Não dá para trabalhar com a criança sem trabalhar com os pais.

– Mas os pais vêm antes ou já trazem a criança?

Dr. Alexandre: A triagem sou eu que faço, eles vêm com a criança. Se a criança vem, ela entra sozinha para conversar comigo, e aí depois os pais entram e a criança fica junto com os pais. Às vezes, se for uma criança mais velha, ela pede para ser chamada, por exemplo no feminino, eu chamo no feminino e os pais tem que entender – eu explico que vou chamar como ela pediu porque para ela é importante.

– Na sua experiência prática, existe diferença com relação às questões socioeconômicas?

Dr. Alexandre: É a mesma demanda, a mesma coisa. O que muda é se são famílias muito religiosas, ou se têm uma base religiosa, isso muda, mas situação econômica não. Já trabalhei com crianças abrigadas, crianças bem pobres, ou de uma classe social diferenciada, filhos de pais, professores universitários.

– Os responsáveis pelo abrigo reconhecem e trazem?

Dr. Alexandre: Hoje sim, graças à mídia que se interessou por falar, me convidar para ir em programas como o da Fátima Bernardes, Fantástico e falar sobre o assunto. Eu vou todo mês para Brasília, o Conselho Federal de Medicina está fazendo uma nova resolução, e eles não iam abordar as crianças e adolescentes, iam falar só dos adultos. Eu fiquei sabendo e fui usando todos os recursos que eu encontrei para pelo menos falar com a comissão. Aí eu fui, dei uma aula para essa comissão para falar que existe essa população e que temos que dar conta dela. Foi difícil essa reunião, mas acabaram me convidando para fazer parte da comissão. Foi uma vitória incluírem as crianças e os adolescentes. Provavelmente essa resolução vai ser votada em plenário, mas só da comissão aceitar colocar como proposta de resolução crianças e adolescentes, já é um respiro. A gente só trabalha porque a defensoria pública do estado de São Paulo e o ambulatório instigou o Conselho Federal de Medicina, falando dos adolescentes que se auto medicavam com altas dosagens, os perigos disso e o que poderíamos fazer por eles. E foi muito legal, pois um dos membros da comissão, que é um professor de urologia do nordeste, fez um parecer muito bem feito, baseado na escola americana e na escola holandesa, e é em cima desse parecer que temos a permissão para o ambulatório existir e acompanhar essas crianças e esses adolescentes aqui. Se sai na Resolução, aí é oficial, e todos vão ter que seguir.

– Sobre a preservação da fertilidade, quando vocês abordam esta questão?

Dr. Alexandre: Olha, com as crianças, na época do bloqueio os profissionais da endocrinologia pediátrica abordam tudo: efeitos colaterais, possibilidades, o que é, as consequências e falam dessa questão, mas a infertilidade não é o maior problema, pois como falei, dependendo da idade que começa o bloqueio você já teve um certo desenvolvimento, então isso para algumas pessoas não interfere, para outras pode interferir, então é algo que se discute lá. Mas para as crianças, principalmente para as meninas que estão bloqueadas, algumas questionam se vão poder engravidar, amamentar, como será a vida, então isso tudo é discutido nas terapias e nas consultas, e com os pais também isso é abordado.

– Vocês encaminham para o Centro de Infertilidade aqui do HC?

Dr. Alexandre: Poderia encaminhar, só que tem uma fila enorme de pessoas “cis”, de casais que precisam, então preferimos deixar a critério de cada um, procurar um serviço público ou um particular. Mas até hoje nós não tivemos nenhum transexual adulto que optou por fazer algum tratamento para engravidar.

– Mas é importante o esclarecimento, uma vez esclarecido a pessoa vai tomar a decisão, e se tiver interesse, vai procurar e vai achar, não é?

Dr. Alexandre: Sim, mas não é uma coisa que eu também me preocupe, dos serviços para a população transexual. Não tenho a intenção de tutorar o tempo todo essa pessoa trans. Fez a mudança corporal, fez a cirurgia, é uma mulher, é um homem, vai seguir a vida, vai viver feliz.

– Se as questões já foram abordadas e tratadas, se a pessoa já está com uma maturidade, já definiu o que quer, vai buscar o que deseja, não é?

Dr. Alexandre: Sim, como uma mulher infértil, ou como um homem infértil vai procurar, vai atrás das possibilidades que tem, se não a gente fica tutorando. Por exemplo, a gente já recebeu aqui adulto transexual hipertenso. Um posto de saúde da periferia de São Paulo mandava porque a mulher estava hipertensa. Não! Por que? A hipertensão da trans é diferente?

– Ainda existe dificuldade do médico para lidar com estas questões?

Dr. Alexandre: Não são todos os profissionais que são preparados e têm uma formação adequada. Quando eu comecei, o trabalho foi uma revolução aqui dentro, os funcionários subiam para ver as “travestis do Dr. Saadeh”, como um zoológico. E para usar o banheiro? Um dia, me chamaram na diretoria executiva por que as minhas pacientes estavam deixando o banheiro feminino sujo, elas não podiam usar o feminino, tinham que usar o masculino. Eu falei não, não são as minhas pacientes, eu bati o pé e descobriram que eram as funcionárias que estavam deixando o banheiro sujo, então me pediram desculpa.

– Falamos que os médicos já encaminham ao serviço quando suspeitam de criança ou adolescente com incongruência de gênero. E os psicólogos? Também teriam que encaminhar quando percebem. Sabem para quem encaminhar?

Dr. Alexandre: Nem sempre. Existe essa população, a demanda, os pais que precisam de orientação, mas ainda tem preconceito, inclusive de alguns profissionais.

– Sobre a equipe que trabalha aqui com você, tem alguma abordagem psicológica específica ou não, e o que eles fazem?

Dr. Alexandre: Nós temos um corpo de psicólogos colaboradores muito grande, todos voluntários, eu não sou restritivo a nenhuma das linhas, desde que o profissional saiba ser ético, observar, ter feito o curso para poder saber a linguagem, como pensamos e fazemos. Alguns trabalham com psicodrama, psicanálise, fenomenologia, análise do comportamento, Jung. Temos diversas abordagens psicológicas aqui.

– E são abordagens individuais ou em grupo?

Dr. Alexandre: A maioria em grupo, adolescentes e adultos. Um ou outro precisa de uma abordagem mais específica e é individual.

– E com as famílias, eles trabalham também ou só você?

Dr. Alexandre: Não, adolescentes, por exemplo, não trabalho mais. De vez em quando me chamam para os pais ficarem mais tranquilos tal, então eu apareço lá. Mas com adolescentes tem um pessoal que trabalha muito bem, então eles é que atuam hoje em dia. E eles têm uma forma de trabalhar diferente, um mês são só os pais, no mês seguinte são os pais com os adolescentes, e vai alternando.

– Com a família a abordagem é sempre grupo?

Dr. Alexandre: Sempre em grupo. Se precisa de um atendimento individual, a gente encaminha para a rede, se não a gente não dá conta. Aqui a gente atende e acompanha as crianças.

– Vocês têm um número certo de vagas, um limite?

Dr. Alexandre: Sim, por isso nós fechamos, para reestruturar o programa com os adolescentes. Por que é muito complicado, uma parte dos profissionais tem uma visão muito de consultório, não de serviço público, e isso é complicado, porque o paciente entra, o paciente “é meu” então eu tenho que cuidar, assistir…e não é, o paciente é do serviço. Estamos fazendo uma reestruturação no fluxo do atendimento a adolescentes: para pacientes que têm diagnóstico psiquiátrico associado, encaminhamos para rede, para CAPS, e a gente vai assessorando a questão de gênero à distância. Ficam aqui os pacientes que são transexuais e que não têm nenhuma morbidade psiquiátrica associada, e que podemos acompanhar em grupo.

– Aqui é SUS, esses pacientes chegam de que forma? Por conta própria?

Dr. Alexandre: São sempre encaminhados.

– E com a criança, o atendimento é individual?

Dr. Alexandre: A gente está evitando fazer psicoterapia individual, manda para a rede ou se tem um psicólogo particular, a gente acompanha, assessora, atende em grupo e vai fazendo um trabalho conjunto com esse profissional.

– Então se eu tenho uma criança que eu suspeito da incongruência de gênero, encaminho para o diagnóstico e tenho um apoio, uma assessoria da equipe daqui?

Dr. Alexandre: Sim, que é o que a gente faz por exemplo, com crianças de outros estados. Recebemos do Brasil inteiro.

– E quando eles chegam aqui e esse grupo já está fechado, qual é a conduta de vocês?

Dr. Alexandre: A gente nem aceita na triagem. Não chega aqui, não consegue se inscrever. Por que chega por e-mail, ou telefone, é mais comum por e-mail por que fica registrado. Quando é adulto, a gente já responde que infelizmente estamos fechados.

– Direcionam para algum serviço?

Dr. Alexandre: Indicamos locais e serviços, se a pessoa pergunta. Falamos quais e os que podem estar abertos. Para adolescente indicamos o de Campinas, que é o mais próximo, mas é um sofrimento. Eu pretendo reabrir o de adolescente novamente!

– A demanda é grande?

Dr. Alexandre: Sim, é grande.

– E quanto mais você abre, mais vai chegando…

Dr. Alexandre: Por isso que a gente está reformulando aqui dentro, para poder mandar para a rede. Tem semanas que tem 10 crianças. E o foco acaba sendo mais as crianças, por que os adolescentes já passaram pela puberdade, tem que ter orientação, mas já passou.

– O atendimento com a criança é muito importante, a preservação da saúde mental, as orientações precoces…

Dr. Alexandre: Sim, o trabalho com a criança é preventivo.

– E a família também vai precisar de orientação. A família do adolescente também, mas a da criança precisa, pois seria uma preservação da saúde mental, não é? Para a família entender melhor e poder lidar, e a sua concepção é interessante: começar da base…

Dr. Alexandre: Isso mesmo, da base, para termos uma pessoa mais inserida, mais integrada, com saúde mental e consciência.

– Hoje em dia está tendo uma maior conscientização? Nos cursos de medicina e psicologia?

Dr. Alexandre: Na medicina tem um curso na área de sexualidade, que aborda o tema. Na PUC SP, em psicologia, eu estou dando uma eletiva, e que está lotada, porque ninguém fala, e quando fala, fala pela “Teoria Queer”, que defende que tudo é sócio cultural, e isso não me convence, não dá, tem um monte de trabalho mostrando que tem uma base biológica, se fosse sócio cultural nenhuma criança apresentaria. É preciso falar, é preciso mostrar para a sociedade. E este tem sido meu trabalho.

Entrevistadores: Muito obrigado Dr. Alexandre!