Autoras: Arielle Nascimento, Flávia Giacon, Valéria Teixeira, Simone Perelson e Vanya Dossi
Coordenadora: Lia Mara Dornelles
Comitê de Psicologia SBRH: Lia Mara Dornelles, Valéria Teixeira, Arielle Nascimento, Cássia Avelar, Débora Farinati, Flávia Giacon, Helena Montagnini, Helena Prado, Juliana Roberto dos Santos, Kátia Straube, Luciana Leis, Rose Marie Melamed, Simone Perelson, Vanya Dossi.
Highlight
No Brasil, as técnicas de reprodução assistida ainda carecem de legislação específica, sendo regulamentadas por diretrizes, como a Resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Essa norma permite a prática da gestação por substituição em casos de impedimentos clínicos à gestação, desde que sem caráter comercial ou lucrativo². Embora essas diretrizes sejam fundamentais para assegurar a ética e a proteção dos envolvidos, reconhece-se que algumas restrições podem levar brasileiros a buscarem alternativas em países com regulamentações mais flexíveis, ampliando o debate sobre o acesso aos tratamentos de reprodução assistida. |
Introdução
No que concerne a oferta de serviços ligados à reprodução assistida, o Brasil vem atraindo cada vez mais estrangeiras e estrangeiros que, por diversas razões, vêm realizar aqui seus tratamentos. Com efeito, como indicado por Souza, Moás, Paes e Junior 1, o Brasil ocupa um lugar importante entre o conjunto de países “alvo” do que primeiramente foi chamado de “turismo reprodutivo”, expressão que atualmente ganha a nova denominação de “cuidados reprodutivos transfronteiriços”.
Como indicam os autores supracitados, estas duas expressões “procuram sintetizar o fenômeno itinerante de deslocamento realizado por pessoas em busca de algum tipo de tratamento proibido ou restrito em seus países de origem”1. Os cuidados reprodutivos transfronteiriços englobam deslocamentos para realizar procedimentos como fertilização in vitro (FIV), injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI), teste genético pré-implantação (PGT), doação de gametas e embriões e gestação por substituição.
Vale observar que a proposta de adoção da expressão “cuidados reprodutivos fronteiriços” no lugar de “turismo reprodutivo” tem por objetivo eliminar os equívocos e confusões gerados por esta última expressão. Em primeiro lugar, a confusão entre “uma prática desconfortável e estressante com lazer e tempo de relaxamento”1. Em segundo lugar, “a conotação negativa que se dá ao termo, ao implicar uma ideia de sonegação da lei ou da busca do paciente por um tratamento no estrangeiro estranho ou ilegal”1. E em terceiro lugar uma associação entre as expressões “turismo reprodutivo” e “turismo sexual”. Com efeito, com uma simples pesquisa na internet, pode-se constatar esta associação: ao colocarmos na barra de pesquisa “turismo reprodutivo”, a maior parte das páginas sugeridas refere-se a “turismo sexual”. Tal fato talvez se explique parcialmente pela presença de ambos os termos na expressão “direitos reprodutivos e sexuais”, mas não devemos ignorar a importância das inúmeras associações que, tanto no plano do imaginário coletivo quanto individual, estabelecem-se entre sexo e reprodução.
É relevante questionar os possíveis impactos subjetivos para aqueles que optam por realizar seu projeto parental por meio dos chamados “cuidados reprodutivos transfronteiriços”. Este boletim, em especial, busca explorar as repercussões emocionais e psicológicas associadas aos casos de gestação por substituição, considerando as complexidades envolvidas nesse processo.
Gestação de Substituição
A gestação por substituição refere-se ao processo em que uma pessoa (gestante substituta) carrega o embrião de outra pessoa ou casal, comprometendo-se a entregar o bebê após o nascimento. Essa técnica oferece uma alternativa reprodutiva para mulheres com contraindicação médica à gestação, homens solteiros, casais homoafetivos masculinos e pessoas transmasculinas que passaram por remoção uterina. Também pode beneficiar transfemininas sem parceria ou em relacionamentos homoafetivos. Entretanto, essa prática envolve questões bioéticas e legais complexas que demandam um debate aprofundado sobre seus limites e implicações.
Segundo a Resolução CFM nº 2.320/2022,2 a mulher que cede temporariamente o útero deve ter ao menos um filho vivo e ser parente consanguínea de um dos parceiros até o quarto grau (pais e filhos no primeiro grau; avós e irmãos no segundo; tios e sobrinhos no terceiro; e primos no quarto grau). Se essa condição não for atendida, é necessário solicitar autorização ao Conselho Regional de Medicina (CRM) do estado em que residem os solicitantes, enviando um relatório médico atestando a adequação emocional de todos os envolvidos. E ainda, diferente de outros países, no Brasil a gestação de substituição somente é admitida sem caráter lucrativo ou comercial.
Pelo fato de o Brasil autorizar essa prática, ele se torna um importante país “alvo” para pessoas cujo país de origem não a autoriza. Ao mesmo tempo, pelo fato de não permitir a remuneração da cedente do útero e preconizar o parentesco entre a gestante e o futuro pai ou futura mãe (exigindo, nos casos que fogem a essa regra, uma autorização do CRM), o Brasil não deixa de figurar também como um país “fuga”. Ou seja, é comum a busca por esse tratamento em outros países como forma de realizar o projeto parental.
Para a mulher, o fato de não poder gestar o próprio filho pode ser doloroso e despertar feridas narcísicas, bem como sentimentos de angústia, frustração e inadequação, necessitando, às vezes, de um tempo para a mulher enlutar-se pelo próprio corpo e para que o marido possa aceitar ver seu filho sendo gestado no útero de outra mulher.3 Nos casos dessa gestação ocorrer geograficamente distante, a aceitação é de que é seu, mas não está ao seu alcance.
Pedir a uma mulher que ceda seu útero para gestar um filho é uma solicitação delicada e carregada de complexidade emocional. Envolve uma série de questões éticas e afetivas, já que a gestante irá carregar um bebê que não é seu e precisará se empenhar em um projeto que demandará dedicação de tempo, cuidado e atenção. Além disso, envolve não apenas a disposição física, mas também a capacidade de lidar com possíveis impactos psicológicos e afetivos ao longo da gestação e após o nascimento do bebê.
Diante disso, quais possíveis fantasias podem estar presentes quando o deslocamento é motivado pela possibilidade de realizar fora de seu país uma prática que em seu país é proibida? Quais impactos subjetivos podem advir do fato de o motor do deslocamento ser a possibilidade aberta aos futuros pais e/ou mães de escapar das restrições de seu país de origem, através da remuneração daquela que irá gestar o seu bebê?
A Resolução CFM² estabelece critérios específicos para a prática da gestação por substituição, incluindo a exigência de vínculo familiar entre a gestante e os solicitantes, salvo autorização especial. Embora essa regulamentação tenha como objetivo proteger os envolvidos e garantir a ética do procedimento, reconhece-se que essas diretrizes podem representar um desafio para alguns casais que não possuem parentes próximos ou que preferem não envolvê-los nesse processo. Esse cenário reforça a necessidade de contínuas reflexões sobre as regulamentações vigentes, buscando equilibrar a preservação dos princípios éticos com a ampliação do acesso aos tratamentos de reprodução assistida.
Assim, cada vez mais, observa-se que alguns pacientes, com o desejo de serem pais, ao se depararem com algumas normativas e regras impeditivas em seus países de origem, se deslocam para localidades com leis mais acessíveis ocasionando no cuidado reprodutivo transfronteiriço. Nesse fenômeno global, as fronteiras se tornam permeáveis e a busca por novas formas de concepção levam à utilização de clínicas fora do país de origem.
Uma informação interessante é que não são todos os países que aceitam a gestação de substituição para pais solo ou casais homoafetivos masculinos. Uns dos países que oferecem atendimento a essa população são a Colômbia, México e os Estados Unidos. Outros países como a Ucrânia permitem a barriga de aluguel para estrangeiros, mas apenas heterossexuais. A Índia, potência em barriga de aluguel até há pouco tempo, primeiro vetou a opção aos estrangeiros e agora está a ponto de proibir a modalidade comercial. Algumas empresas fazem o agenciamento dos procedimentos e se encarregam de encontrar mulheres que serão candidatas à gestação por substituição ou doadores de gametas. As próprias clínicas de fertilidade acabam ditando as regras devido à ausência de um arcabouço regulatório, por não ter uma legislação específica, ficando às vezes, incapazes de abarcar a prática da gestação por substituição em conformidade às demandas.
Considerações Finais
Diante da divulgação desses deslocamentos intercontinentais para ter um filho, surge, no cotidiano das clínicas de Reprodução Assistida no Brasil, complexas abordagens por parte de pacientes, requerendo a esses serviços novos formatos de tratamento que os atendam em sua demanda pessoal. Não é rara a presença de pessoas interessadas na venda de óvulos ou sêmen e, especificamente nos casos de gestação por substituição, perguntarem sobre a possibilidade da remuneração financeira entre os envolvidos no tratamento. Tais situações impactam a realidade das clínicas, suscitando novos debates e posicionamento técnico, ético e jurídico.
No Brasil, as clínicas que realizam tratamentos de gestação por substituição devem atender às exigências estabelecidas pela Resolução CFM², que incluem a elaboração de documentos e cláusulas contratuais abrangendo termos de consentimento, compromisso, aptidão e acompanhamento multidisciplinar à cedente do útero antes, durante e após a gestação. Essas diretrizes reforçam a complexidade e a seriedade desse tipo de tratamento, refletindo o compromisso com a ética e a segurança dos envolvidos, ao mesmo tempo em que evidenciam desafios que também são enfrentados em outras partes do mundo.
A partir do olhar para esse contexto, destacamos duas principais necessidades que se apresentam para as clínicas brasileiras: sustentar as regulamentações que vigoram em nosso país, e, ao mesmo tempo, garantir, de forma contínua e coletiva, espaços de reflexão sobre a prática de reprodução assistida no Brasil e seus efeitos legais e subjetivos. Dessa forma, haverá aberturas para análise de novas regulamentações e possibilidades de tratamento, sem renunciar à responsabilidade e da ética, imprescindíveis em nosso ofício.
Enfim, considerando a complexidade do tratamento de gestação por substituição, é fundamental que a prática seja regulamentada de forma clara e transparente, garantindo os direitos de todas as partes envolvidas.
Referências
- Souza SHN, Moás L da C, Paes Ede A, Xavier Junior EC. Turismo reprodutivo: o vácuo normativo internacional sobre os cuidados reprodutivos transfronteiriços e a violação aos direitos humanos de mulheres. [acesso em 14 out 2024]. Disponível em
https://www.researchgate.net/publication/362438831.
- 2. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução CFM no. 2.320/2022. Adota Normas Éticas para a Utilização de Técnicas de Reprodução Assistida. Diário Oficial da União, 2022. Set 20; Seção 1:107. [acesso em 13 out 2024]. Disponível em:https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2320.
- Avelar CC, Montagnini HML, Lopes HP. Considerações sobre os aspectos psicológicos na gestação de substituição. Em: Straube KM, Melamed RMM. Reprodução Assistida – Guia de Recomendações de Atenção Psicossocial nos Centros de Reprodução Assistida. São Paulo: Soul, 2018. p. 17-23.
- Morai G. A., (2024) Gestação por substituição que transpassa fronteiras: análise acerca do turismo reprodutivo.