Comitê: Psicologia

Continuar ou parar de tentar: algumas considerações sobre os limites nos tratamentos reprodutivos

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Autoras: Arielle Nascimento, Flávia Giacon, Valéria Teixeira, Simone Perelson e Vanya Dossi

Coordenadora: Lia Mara Dornelles

Comitê de Psicologia SBRH: Lia Mara Dornelles, Valéria Teixeira, Arielle Nascimento, Cássia Avelar, Débora Farinati, Flávia Giacon, Helena Montagnini, Helena Prado, Juliana Roberto dos Santos, Kátia Straube, Luciana Leis, Rose Marie Melamed, Simone Perelson, Vanya Dossi.

 

Highlight

Os tratamentos para engravidar podem ser desgastantes emocional e fisicamente. A repetição de ciclos sem sucesso pode afetar a vida pessoal, social e profissional, levando, muitas vezes, ao esgotamento, provocando dúvidas sobre a continuidade ou não do projeto de gestação. A escolha de parar com os tratamentos não é uma decisão fácil, já que o sonho de ter um filho ocupa um lugar muito importante para a maioria das pessoas em tratamento.

O suporte psicológico pode favorecer a tomada de decisão de cada indivíduo ou casal, já que oferece a possibilidade de reflexão e elaboração de suas necessidades, desejos e circunstâncias pessoais. 

Mostra-se necessário o desenvolvimento de estudos sobre os benefícios e os malefícios da regulação de um limite para o número de tentativas. 

Introdução

Os tratamentos para engravidar podem ser desgastantes emocional e fisicamente. Estímulos hormonais sucessivos, monitoramento do corpo, coleta de óvulos, transferências embrionárias e altas expectativas fazem com que, ao vivenciar este contexto, muitos pacientes se deparem com limites, frustrações e desgastes. 

Com o prolongamento das tentativas e a recorrência dos insucessos, novas questões se colocam para os pacientes e para a equipe da clínica, já que este fato faz com que haja a necessidade de tomada de decisões importantes, como prosseguir nas tentativas ou a delicada decisão de interrompê-las. Nesse momento, fatores como o investimento financeiro e emocional e a ausência de garantias se somam a essa balança de difícil equilíbrio. Na narrativa de pacientes que vivenciam esse conflito, é comum relatarem um acúmulo de desgastes ao longo das etapas do tratamento, que requerem com frequência uma grande abnegação, impactando projetos pessoais, sociais e profissionais. 

Thais Garrafa, em seu texto Parar de tentar, sublinha que a exigente dedicação ao tratamento, com o objetivo de aumentar sua eficácia, pode “produzir exatamente o inverso do que se espera: o distanciamento com relação ao projeto de gestação, da relação amorosa e erótica e dos projetos de vida envolvidos”.1 Dessa forma, percebe-se que quando esse percurso de dedicação começa a parecer infértil para o paciente, o projeto e o desejo de ter filhos pode deslizar para um lugar no psiquismo desse casal que já não mais os impulsiona para novas tentativas. Por outro lado, a desistência das tentativas soa, muitas vezes, como fracasso, falha, e falta de persistência, corroborando para que os pacientes prossigam no ímpeto de realizar novos tratamentos, desconsiderando seus próprios limites. 

É importante considerar que a incerteza sobre seguir ou não com o processo de tentativas requer reflexão por parte dos pacientes sobre os efeitos, não apenas imediatos, mas também futuros, visto que assumir qualquer decisão exigirá renunciar algo. Nos casos em que a decisão é parar de tentar e seguir a vida sem filhos, o processo passa por aceitar um futuro diferente do que idealizou ao longo da vida com a presença de filhos. Entendemos ser fundamental que a clínica de reprodução assistida ofereça, através da escuta psicológica e de uma atenção especializada de toda a equipe, condições de elaboração, por parte dos pacientes, sobre esse contexto em suas vidas para que possam sustentar uma tomada de posição. Como sinaliza Garrafa “somente a escuta e o acolhimento às dúvidas, hesitações, contradições, ambivalências e inconsistências podem favorecer mudanças de posições subjetivas que reflitam escolhas autorais”.1

Nos casos em que o paciente decide por mais uma tentativa, o cuidado da equipe precisa ser direcionado de forma singular, considerando a história desses sujeitos. Compreendemos que a vulnerabilidade vivenciada por esses pacientes convoca a uma atenção multidisciplinar, com protocolos diferenciados, oferecendo um suporte que disponibilize mais acesso à equipe da clínica, a mais consultas psicológicas, sem abrir mão de apresentar sempre a verdade para os pacientes com informações sobre as suas possibilidades e limites.

É fundamental, também, que os profissionais das clínicas de reprodução assistida possam estar atentos em relação a como lidam com seus próprios limites e frustrações frente a um tratamento sem sucesso e os sentimentos que daí podem decorrer.

Limite de tentativas: regulamentá-lo a priori ou deixá-lo nas mãos dos pacientes?

Atualmente, no contexto brasileiro, podemos observar duas situações diferentes segundo as quais a questão dos limites para a continuidade das tentativas se apresenta. Por um lado, nos serviços privados de reprodução assistida, a decisão quanto ao momento de interromper o tratamento após a ocorrência de sucessivos insucessos recai em última instância sobre os pacientes. Por outro lado, nos raros serviços públicos em que a fertilização in vitro é oferecida, um claro limite já é colocado desde o início do tratamento. Ou seja, a decisão quanto ao número de tentativas não recai sobre os pacientes, nem tampouco sobre os médicos que lhes tratam, ambos devendo se submeter a uma norma externa, baseada sobretudo nos limites impostos pelos parcos orçamentos disponibilizados pelo Estado para estes serviços. No Hospital Materno Infantil de Brasília – Serviço de Reprodução Humana Centro de Ensino e Pesquisa em Reprodução Assistida, por exemplo, os pacientes têm direito apenas a duas tentativas.2 A esse respeito, vale uma comparação com o contexto francês, onde há uma ampla oferta de tratamentos de reprodução assistida nos serviços públicos de saúde, de modo que praticamente todos aqueles que recorrem aos tratamentos o fazem pelo sistema público, sendo assim beneficiados pela gratuidade e submetidos às mesmas normas, as quais estabelecem o limite de até quatro FIVs para seus usuários.3

Até aqui foram apontadas as dificuldades, até mesmo os limites psíquicos com os quais podem se deparar os pacientes quando confrontados com o desejo, a recusa, a necessidade ou a impossibilidade de estabelecerem por si próprios o limite, isto é o ponto final de seu processo de tentativas.  Mas junto com as dificuldades apontadas no que se refere aos pacientes, devem ser também consideradas as dificuldades, ou mesmo os impasses que se colocam para a equipe médica (ou multidisciplinar) tratante. Sendo sua prática submetida aos quatro Princípios da Ética Biomédica – a autonomia, a beneficência, a não-maleficência e a justiça,4 como equilibrar a balança quando, por exemplo o respeito à autonomia do paciente parece entrar em contradição com o princípio da beneficência ou da não maleficência? Com efeito, a consideração  pelo princípio da autonomia nos conduz à compreensão de que as decisões referentes ao limite das tentativas devem se dar sempre de forma singular, no caso a caso, e como consequência das avaliações tanto dos médicos quanto dos pacientes, Por outro lado, uma eventual regulamentação deste limite (isto é, a delimitação a priori de um número máximo de tentativas para todos os casos) por órgãos competentes, como por exemplo o Conselho Federal de Medicina – poderia favorecer, em diversos casos, um melhor cumprimento  dos três outros princípios éticos. Além disso, esta delimitação, que certamente implicaria uma restrição à autonomia dos pacientes, traria o benefício de oferecer uma referência para muitos daqueles  que, como já indicado, se veem desamparados na tentativa infrutífera de alcançar um impossível equilíbrio numa balança que, antes de lhes trazer elementos para uma resposta segura, não para de pender ora para um lado ora para o outro, jogando-os em um terreno onde suas decisões lhes são impostas como “escolhas de Sofia”, lançando-os numa vertigem muitas vezes insuportável. 

Talvez o desenvolvimento de pesquisas, ainda inexistentes, que comparem os dois contextos possa futuramente indicar a pertinência ou não do estabelecimento deste limite. No momento, podemos apenas apontar para o fato de que se, por um lado, ele pode ampliar a angústia dos pacientes, os quais seriam confrontados desde a entrada no tratamento com um imperativo limitante, por outro lado, ele poderia, em alguma medida, facilitar, após o número possível de tentativas ser atingido, partir para outros projetos, desejos e sonhos ao invés de permanecerem petrificados na angústia sem fim das tentativas ilimitadas. 

Considerações Finais

Sabemos que, por mais que haja a possibilidade de outros projetos para além de se ter um filho, coloca-se sobre as mulheres e casais, uma pressão muito forte para engravidar. Quando as tentativas se alongam e a gravidez não vem, questionamentos e conflitos sobre a continuidade ou não do projeto de gestação surgem, colocando o sujeito diante da sua incompletude. De fato, nossa relação com o mundo é marcada pela existência da falta. Somos marcados pela insuficiência. A maneira com que o sujeito vem a lidar com essa questão não passa por reencontrar o objeto de desejo em si, mas ressignificar essa incompletude, ampliando o olhar para outras possibilidades. 

A decisão entre prosseguir nas tentativas de ter filhos através de reprodução assistida, optar pela adoção ou pelo projeto de vida sem filhos, é profundamente pessoal e deve ser baseada em uma análise cuidadosa dos desejos, valores e circunstâncias individuais. Seja qual for a escolha do paciente, desafios são previstos. Desta forma, é importante que ele possa contar com profissionais acolhedores e respeitosos de sua decisão, auxiliando-os nesta nova jornada. 

O suporte psicológico pode oferecer espaço fértil para elaboração de respostas, construídas pelo próprio paciente, considerando sua história de vida e as possíveis repercussões futuras, facilitando a abertura de caminhos e invenções de novas saídas diante do projeto de ter filhos.

Visto as dificuldades levantadas para que os pacientes de reprodução assistida, mesmo quando acolhidos por uma atenta equipe multidisciplinar, possam definir por si próprios um limite para as tentativas, isto é, o momento de interromper seus esforços para realizar o sonho de um filho biológico, parece-nos importante o desenvolvimento de pesquisas que comparem os benefícios e os malefícios para os pacientes do estabelecimento de um limite claro, colocado desde o início do tratamento, quanto ao número máximo de tentativas nos casos de recorrência de insucessos.  

Referências

  1. Garrafa, Thais. Parar de tentar. In: Leis, L, Sá, P, G, organizadores. Psicologia em infertilidade e Reprodução Assistida da teoria à prática. 1 ed. São Paulo: Editora dos editores, 2023
  2. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Hmib retoma atendimentos na Unidade de Reprodução Humana (Internet). Brasília, 2020. Available from:  https://www.saude.df.gov.br/web/guest/w/hmib-retoma-atendimentos-na-unidade-de-reproducao-humana, acesso: 15/06/2024
  3. Véronique Lefebvre des Noettes. PMA, FIV… La « fabrique de l’humain » face aux enjeux biologiques, sociétaux et éthiques. (Internet). França, 2023. Available from https://theconversation.com/pma-fiv-la-fabrique-de-lhumain-face-aux-enjeux-biologiques-societaux-et-ethiques-218548, acesso: 15/06/2024
  4. Diniz, D, Guilhem, D. O que é bioética? São Paulo: Editora Brasiliense, 2002.

 

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