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Comitê: Famílias Plurais

CUIDADOS À SAÚDE DOS TRANSGÊNEROS

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Introdução

Indivíduos transgêneros (trans) e com diversidade de gênero enfrentam assédio, discriminação e rejeição dentro da sociedade. O acesso à saúde, muitas vezes, é inadequado com dificuldades enfrentadas para autorização de cirurgias e exames pelos planos de saúde; pouca oferta de serviços terciários para realização de cirurgia de afirmação de gênero (CAG) tanto na rede privada como no Sistema Único de Saúde (SUS) e de serviços secundários para acompanhamento da saúde mental, bem como a falta de conscientização e de conhecimento sobre terapia hormonal de afirmação de gênero (THAG).

A atenção integral à saúde das pessoas trans deve contemplar o acolhimento, o acompanhamento ambulatorial, a THAG e a CAG para aqueles que desejam, garantindo o acesso, sem qualquer tipo de discriminação, às atenções básica, especializada e de urgência e emergência (1). Uma prestação de cuidados de saúde mais inclusiva para esta população começa com a criação de ambientes mais acolhedores nos ambientes de saúde. Os consultórios podem ser adaptados para se tornarem mais inclusivos e convidativos com a adição de objetos e adornos representando todos os indivíduos que podem procurar serviços de saúde, sinalização a adoção de uma política de não discriminação, banheiro neutro acessível a todas as pessoas entre outros (2). Nas instituições públicas e privadas é necessário que seja realizado o treinamento de toda equipe sobre linguagem apropriada como o uso de pronome e nome social bem como sobre as necessidades de saúde de pacientes transgêneros, evitando suposições sobre a orientação sexual, práticas sexuais e cirurgias dos pacientes. Dessa forma, são acolhidas em suas individualidades com empatia e estão seguras contra discriminação naquele local (3). Um atendimento inadequado pode resultar em abandono do acompanhamento médico, obtendo hormônios de amigos ou fontes não licenciadas, colocando-os em risco de dosagem inadequada e das sequelas subsequentes (2). 

A matriz de competências para a formação do médico ginecologista-obstetras (GO) contempla o treinamento deste profissional para o cuidado ambulatorial aos transgêneros envolvendo o conhecimento sobre as necessidades específicas desta população incluindo a capacitação para a realização da THAG (4). O desenvolvimento desta habilidade para o GO contribuirá para aprimorar o cuidado às pessoas trans. 

A THAG está associada a efeitos adversos metabólicos, cardiovasculares e reprodutivos e o controle destes eventos é essencial para a saúde geral da pessoa trans. Assim, antes de oferecer a THAG é necessário realizar uma investigação basal sobre a saúde geral da pessoa e discutir os aspectos reprodutivos envolvendo os desejos parentais imediatos ou em longo prazo, a preservação da fertilidade, desejo de adoção e métodos contraceptivos (3,5). As opções de preservação da fertilidade para indivíduos transgênero são as mesmas para os indivíduos cisgênero.

 

Atendimento ginecológico 

Na abordagem inicial, se não houver o nome social no prontuário é necessário perguntar como a pessoa deseja ser chamada. A anamnese é dirigida  de acordo com a queixa e dúvidas da pessoa independente da orientação sexual ou da identidade de gênero. É importante investigar na anamnese transtornos ansiosos, depressivos, uso de substâncias e tentativas suicidas com grande incidência nessa população vulnerável exposta continuamente a estressores sociais. O exame físico deve ser dirigido à queixa da pessoa. Durante todo exame é recomendado pedir consentimento e explicar cada etapa do exame a ser realizada. Em algumas situações, caso o indivíduo não se sinta confortável, o exame físico pode ser  adiado para outro momento (3).

Em mulheres trans, deve-se observar algumas particularidades como uso de silicone industrial; hábito de “aquendar” ou “tucking” (colocação dos testículos nas lojas inguinais e o pênis ser puxado para trás entre as penas preso com fita adesiva); presença de neovagina e a existência da próstata (6) (3). As mulheres trans que fizeram uso de silicone industrial devem ser avaliadas no exame físico nesses locais e em adjacências devido risco de migração do material, inclusive de trombose venosa profunda e síndrome compartimental (7). Com relação ao ato de “tuking” é necessário orientar sobre possíveis complicações como dor testicular; irritação ou laceração da pele, possibilidade de torção testicular e questionamento com risco aumentado de infertilidade (8).

Em mulheres com neovagina, precisa-se abordar sobre desconfortos com os dilatadores, satisfação com a sensação e profundidade de neovagina, além da presença de corrimento, sangramento e controle esfincteriano. A neovagina tem um pH (entre 5,0 e 7,0) maior que o da mulher cisgênero (cis) (pH entre 4,0 e 5,0) não havendo lactobacillus e a flora depende da técnica cirurgica (9). Dessa forma, muitas vezes a escolha de antibióticos para corrimento vaginal difere da mulher cis. Além disso, é necessário rastrear infecções sexualmente transmissíveis (IST). Vale lembrar que a CAG não inclui prostatectomia, ficando a próstata localizada na parede anterior da neovagina e o toque vaginal é adequado para avaliação prostática quando devidamente necessário. O rastreamento para o câncer de próstata deve ser realizado de acordo com as normas do Ministério da Saúde (MS).

Para o homem trans, deve-se avaliar uso de binder que é uma faixa torácica que comprime as mamas, podendo ser utilizado por no máximo por 12 horas ao dia, pois o uso excessivo pode causar lesões cutâneas e osteomusculares; uso de packers (prótese peniana móvel de silicone ou borracha); realização ou não de toracoplastia masculinizadora e relação sexual com penetração. É necessário orientar, sobre o uso de preservativo, e higienização adequada no packer nas relações sexuais (3). 

O uso de testosterona promove a interrupção da menstruação no homem trans. Contudo, se o sangramento uterino continuar, pode-se considerar a adição de medroxiprogesterona de depósito ou outro progestagênio (10). Os exames de rastreamento de câncer de colo uterino para os homens não operados que utilizaram ou utilizam práticas sexuais penetrativas e de mama deve seguir as mesmas diretrizes de triagem recomendadas pelo MS para mulheres cis. Para os homens que realizaram a toracoplastia masculinizadora, o risco teórico é menor, mas ainda faltam estudos conclusivos.

 

Terapia hormonal e monitoramento laboratorial

A atenção médica especializada para o cuidado ao transgênero deve ser composta por equipe mínima formada por pediatra (em caso de pacientes com até 18 anos de idade), psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico, sem prejuízo de outras especialidades médicas que atendam à necessidade do Projeto Terapêutico Singular (11). Os  principais objetivos da THAG são induzir características sexuais compatíveis com a identidade de gênero, reduzir os níveis de hormônios sexuais endógenos, reduzindo as características sexuais secundárias do sexo biológico, e aumentar os níveis hormonais do gênero ao qual a pessoa se identifica (10). Pode ser iniciada após diagnóstico de incongruência de gênero por equipe multidisciplinar e idade mínima de 16 anos, sendo vedada qualquer intervenção envolvendo uso de hormônios ou procedimentos cirúrgicos com a finalidade estabelecida de mudanças corporais e genitais em crianças pré-púberes. Além disso, é obrigatório obter o consentimento livre e esclarecido, informando ao transgênero sobre a possibilidade de esterilidade advinda dos procedimentos hormonais e cirúrgicos para a afirmação de gênero. Já para a CAG exige-se a idade mínima de 18 anos de idade (11). Pelas normas do MS, a THAG pode ser oferecida a partir dos 18 anos e a CAG a partir dos 21 anos de idade (12). O monitoramento metabólico (lipidograma), da função hepática (TGO, TGP) e dosagem de prolactina para a mulher e de hematócrito para o homem, bem como o oferecimento de sorologias devem ser realizados antes do inicio da THAG e a cada 6 ou 12 meses.

Para o homem trans, a THAG compreende a prescrição do cipionato de testosterona na dose de 200 mg/2ml. É prescrito a cada 15 ou 21 dias por via intramuscular (IM) (13) enquanto que o undecilato ou undecanoato de testosterona é prescrito por via IM na dose de 1000mg a cada 12 semanas sem superioridade entre elas e a testosterona transdérmica para uso diário (10). Para a mulher trans a THAG inclui a administração exógena de do estrogênio (estradiol) e dos antiandrogênios (ciproterona, espironolactona, inibidores da 5α redutase), com o objetivo de induzir as características sexuais secundárias femininas, especialmente, o crescimento das mamas. O estradiol via oral é recomendado na dose de 2.0–6.0 mg/dia iniciando com 1 mg/dia e aumentar a cada seis meses de acordo com a resposta de cada pessoa  (10). Por via transdérmica o 17β-estradiol pode ser utilizado e é recomendado para mulheres acima de 45 anos de idade (14), na dose de 1.5 mg/dia atingindo um máximo de 2,5 mg/dia (15). O uso de acetato de ciproterona na dose de 50-60 mg/dia durante vários anos foi associado a um risco aumentado de 6.6 vezes (23.8 usuárias/100000 contra 4.5/100 000 pessoas por ano nos controles) na incidência de meningioma que persistiu mesmo após a suspensão da droga durante um ano (16). 

Muitos adolescentes com incongruência de gênero acham as mudanças físicas da puberdade insuportáveis, podendo provocar danos psicológicos. Por isso, algumas sociedades sugerem a supressão puberal no início da puberdade, promovendo um melhor resultado psicológico e físico. A Endocrine Socity recomenda contra o bloqueio da puberdade e tratamento hormonal de afirmação de gênero na pré-puberdade de crianças com incongruência de gênero. E sim, deve ser iniciado o bloqueio de puberdade,  apenas, após a primeira exposição de meninas e meninos a mudanças físicas da puberdade (Tanner 2) (10). No Brasil, o bloqueio hormonal só poderá ser realizado exclusivamente em caráter experimental em protocolos de pesquisa, de acordo com as normas do Sistema CEP/Conep, em hospitais universitários e/ou de referência para o Sistema Único de Saúde (11). Para suprimir os hormônios da puberdade, utiliza-se análogos de GnRH com a possibilidade de reversibilidade da intervenção ao descontinuar a medicação se o indivíduo não desejar mais a transição (2). 

O aumento de risco de tromboembolismo pode estar associado ao uso do estrogênio sintético, etinilestradiol. Assim, o uso de estrogênios sintéticos e estrogênios conjugados é indesejável por causa da incapacidade de regular as doses medindo os níveis séricos e o risco de doença tromboembólica, não sendo indicado seu uso (10). Além disso, a terapia com estrogênio pode aumentar o crescimento de células lacttrotróficas da hipófise e, dessa forma, deve-se fazer o monitoramento com prolactina no início do estudo e, a seguir, pelo menos anualmente durante o período de transição e a cada 2 anos a partir de então (10).

 

Gestação e anticoncepção

Gravidez é possível após a transição e, talvez, o mais importante, é o aconselhamento contraceptivo para evitar gravidezes indesejadas. Sabe-se que a THAG  não é uma contracepção apesar de promover  a ovulação na maioria dos homens trans. Indivíduos sexualmente ativos com gônadas retidas que não desejam engravidar ou causar gravidez em outras pessoas devem ser aconselhados sobre a possibilidade de gravidez. Homem trans em uso de testosterona pode evoluir com cessação da menstruação, fazendo com que o indivíduo creia na anticoncepção, contudo a testosterona não tem essa função. 

Todos os pacientes devem ser aconselhados sobre o uso de barreiras para prevenção de infecções sexualmente transmissíveis. Para indivíduos transmasculinos interessados em contracepção hormonal, a testosterona não é uma contra-indicação específica ao uso de qualquer forma de contracepção. Além disso, o uso de métodos anticontraceptivos com estrogênios pouco interfere na masculinização adquirida com uso de testosterona (2).

 

Referências 

 

1. Sindhosp [Internet]. 2020 [citado 31 de julho de 2023]. CFM divulga instruções para cuidado à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero. Disponível em: https://sindhosp.org.br/cfm-divulga-instrucoes-para-cuidado-a-pessoa-com-incongruencia-de-genero-ou-transgenero/

2. Health Care for Transgender and Gender Diverse Individuals: ACOG Committee Opinion, Number 823. Obstet Gynecol. 1o de março de 2021;137(3):e75–88.

3. SOC V7_English.pdf [Internet]. [citado 31 de julho de 2023]. Disponível em: https://wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_English.pdf

4. Matriz-de-competencias—2a-edicao—web.pdf [Internet]. [citado 31 de julho de 2023]. Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/images/Matriz-de-competencias—2a-edicao—web.pdf

5. Bayar E, Williams NJ, Alghrani A, Murugesu S, Saso S, Bracewell-Milnes T, et al. Fertility preservation and realignment in transgender women. Hum Fertil (Camb). 17 de fevereiro de 2023;1–20.

6. Tiemessen CH, Evers JL, Bots RS. Tight-fitting underwear and sperm quality. Lancet. 29 de junho de 1996;347(9018):1844–5.

7. Pinto TP, Teixeira F do B, Barros CRDS, Martins RB, Saggese GSR, Barros DD de, et al. [Use of industrial liquid silicone to transform the body: prevalence and factors associated with its use among transvestites and transsexual women in São Paulo, Brazil]. Cad Saude Publica. 27 de julho de 2017;33(7):e00113316.

8. Turley R, Potdar N. A Case of Oligoasthenoteratozoospermia Following Genital Tucking: Transgender Fertility Preservation. Reprod Sci. julho de 2023;30(7):2248–51.
9. Weyers S, Verstraelen H, Gerris J, Monstrey S, Santiago G dos SL, Saerens B, et al. Microflora of the penile skin-lined neovagina of transsexual women. BMC Microbiol. 20 de maio de 2009;9:102.

10. Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine Treatment of Gender-Dysphoric/Gender-Incongruent Persons: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab. 1o de novembro de 2017;102(11):3869–903.

11. CFM atualiza regras para aperfeiçoar o atendimento médico às pessoas com incongruência de gênero | [Internet]. [citado 31 de julho de 2023]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-atualiza-regras-para-aperfeicoar-o-atendimento-medico-as-pessoas-com-incongruencia-de-genero/

12. Minist rio da Sa de [Internet]. [citado 31 de julho de 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html

13. Costa LBF, Rosa-E-Silva ACJ de S, Medeiros SF de, Nacul AP, Carvalho BR de, Benetti-Pinto CL, et al. Recommendations for the Use of Testosterone in Male Transgender. Rev Bras Ginecol Obstet. maio de 2018;40(5):275–80.

14. Coleman E, Bockting W, Botzer M, Cohen-Kettenis P, Cuypere G, Feldman J, et al. Standards of Care for the Health of Transsexual, Transgender, and Gender-Nonconforming People, Version 7. International Journal of Transgenderism. 1o de agosto de 2012;13:165–232.

15. Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine Treatment of Gender-Dysphoric/Gender-Incongruent Persons: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab. 1o de novembro de 2017;102(11):3869–903.

16. Weill A, Nguyen P, Labidi M, Cadier B, Passeri T, Duranteau L, et al. Use of high dose cyproterone acetate and risk of intracranial meningioma in women: cohort study. BMJ. 3 de fevereiro de 2021;372:n37.

 

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