RIO — O uso de técnicas de edição genética em humanos é um dos temas mais controversos na ciência hoje, levantando uma série de questões éticas. Afinal, o que determina até onde os pesquisadores podem ir de posse de novas tecnologias e apoiados no avanço do conhecimento? Muitos países, o Brasil entre eles, proíbem estudos com embriões humanos. Mas um cientista do Instituto Karolinska — conhecido por indicar os vencedores do Nobel de Fisiologia e Medicina —, em Estocolmo, na Suécia, obteve aprovação para quebrar esse tabu. Pela primeira vez, embriões humanos saudáveis estão sendo modificados geneticamente em um experimento. O objetivo, louvável, é melhorar a eficácia dos tratamentos de fertilização. Mas há o temor de que a técnica abra alas para o design de bebês sob encomenda e tentativas de melhoramento da espécie.
No ano passado, cientistas chineses anunciaram experimentos de engenharia genética com embriões humanos. Mas, naquele estudo, foram utilizados embriões não viáveis, que nunca poderiam gerar um bebê. Agora, Fredrik Lanner e sua equipe no Instituto Karolinska estão usando zigotos sadios, que estavam congelados em clínicas de fertilização, mas seriam descartados. Eles esperam que, por meio da desativação de determinados genes, seja possível compreender melhor os primeiros estágios do processo de desenvolvimento humano.
— Apenas olhando para os embriões nós poderemos entender por que eles, em alguns casos, não desenvolvem uma gravidez — explica Lanner. — Precisamos ir um pouco mais fundo, para ver os mecanismos moleculares, os genes que controlam os estágios iniciais do desenvolvimento
Na primeira semana, o ovo fertilizado se transforma no chamado blastocisto, que indica que ele está pronto para ser implantado. Nesse estágio, o embrião possui centenas de células, de três tipos distintos: os trofoblastos, que vão formar a placenta; os hipoblastos, que formarão a endoderme; e as células embrionárias, que vão formar o feto. Para que o embrião se fixe na parede do útero e dê início à gravidez, essas células devem estar apropriadamente maduras, mas o funcionamento deste processo de maturação ainda é desconhecido. É o que Lanner pretende esclarecer.
Em resumo, uma das ideias é desativar um determinado gene do embrião e observar o seu desenvolvimento. Se ele não evoluir corretamente nos dias seguintes, a equipe saberá que o gene em questão é essencial para a formação da vida.
De acordo com João Sabino da Cunha Filho, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor da Clínica Insemine, os tratamentos mais modernos de reprodução assistida envolvem o Diagnóstico Genético Pré-Implantacional (DPI), que permite aos médicos realizar uma biópsia nos embriões antes da implantação, para seleção dos mais propensos a gerar uma gestação. Mesmo assim, as chances de sucesso são de 50%.
— Com 5 dias de desenvolvimento, a gente abre um pequeno buraco e retira algumas células para análise, sem danificar o embrião — explica Sabino. — Se o experimento (de Lanner) der certo, poderemos ver se o embrião tem aqueles genes específicos e selecionar aqueles com mais potencial.
PROCEDIMENTO FOI REALIZADO EM 12 EMBRIÕES
Essa é a esperança do pesquisador sueco. Para isso, ele está realizando experiências com embriões com dois dias de desenvolvimento, que possuem apenas quatro células. Em uma delas, é aplicada a ferramenta de edição genética CRISPR-Cas9, para desabilitar genes que foram mapeados anteriormente e demonstraram atividade nos três tipos de células do blastocisto. O estudo ainda está em estágio inicial. As primeiras injeções com o CRISPR-Cas9 foram aplicadas no mês passado, em 12 embriões.
Os ovos foram cultivados in vitro por 7 dias, e as células que receberam a ferramenta foram acompanhadas durante o período. No momento, os pesquisadores estão avaliando se o uso do CRISPR-Cas9 realmente desabilitou os genes, comparando sua estrutura com outras células que não receberam a injeção.21
— Ainda nem sabemos se os embriões foram realmente modificados — afirma Lanner. — Estamos construindo o experimento degrau por degrau. Recebemos a autorização do comitê de ética de Estocolmo em junho do ano passado. A partir daí, começamos a organizar a pesquisa. O primeiro passo foi otimizar a ferramenta. Depois, nos asseguramos de que tínhamos uma boa forma de injetá-la nas células sem danificar o ovo. Agora, estamos na fase de analisar efetivamente os embriões, em busca de alterações. Depois, vamos observar as mudanças nessas células, tanto morfológicas como em nível molecular e genético.
Ciente da polêmica, Lanner explica que existem limites para aplicação da engenharia genética. Para o seu experimento, o período máximo de cultivo dos embriões é de sete dias, o necessário para os estudos propostos. Legalmente, na Suécia, ele poderia manter os ovos por até duas semanas. Além disso, é vedado por lei que os embriões geneticamente modificados sejam implantados no útero de uma paciente.
A pesquisadora Patrícia Pranke, do Instituto de Pesquisa com Células-Tronco, participou da elaboração da Lei de Biossegurança brasileira, que entrou em vigor em março de 2005. Ela explica que, pela legislação atual, um experimento como o conduzido pelo instituto sueco não seria permitido em território nacional. No artigo 6º, a lei deixa claro ser proibida a “engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano”.
— Talvez esteja na hora de rever a lei — pontua Patrícia.
RISCOS DA FÁBRICA DE BEBÊS
A pesquisadora destaca que, além do melhor entendimento sobre os primórdios do desenvolvimento humano, estudos com edição de embriões podem levar a tratamentos para doenças hereditárias. Contudo, Patrícia ressalta que há riscos sobre o mau uso da tecnologia. Se for provada a possibilidade da alteração, de forma precisa e segura, de genes em embriões humanos, pode ter início uma indústria de bebês sob encomenda ou terapias para melhoramento de certas características.
— Editar pequenos genes para produzir bebês sob medida, como a cor dos olhos, pode ser tecnicamente possível. Ou super-bebês, projetados para serem mais fortes e inteligentes — diz a pesquisadora brasileira. — O problema é que pode ocorrer algum acidente no caminho, que acabe criando doenças ainda desconhecidas.
Existe ainda uma oposição religiosa, de instituições que não admitem aventuras genéticas. A própria Igreja Católica acredita que a vida começa na concepção. Assim, qualquer manipulação, até mesmo o congelamento em clínicas de reprodução assistida, é considerada uma ofensa.
Diante de todas as objeções e riscos, Lanner se diz um entusiasta, mas cético em relação à ferramenta CRISPR-Cas9.
— A técnica progrediu de forma fantástica nos últimos anos, criou esperança de que doenças genéticas possam ser resolvidas — diz o pesquisador. — Mas o que precisa ser respondido é se a tecnologia é eficiente e segura o suficiente.
O experimento com os embriões ainda está em fase inicial, mas ele acredita que a taxa de sucesso na edição genética fique entre 25% e 50% do total de células que receberam a injeção. E estima que para a alteração de um gene, como cor dos olhos, o procedimento seja até cem vezes mais complicado.
O experimento em curso consiste na injeção do CRISPR-Cas9 em apenas uma célula. Para a implantação de uma mutação, ela teria que ser injetada, e funcionar, em todas as células
— Muito se fala sobre os bebês sob encomenda. Mas estamos muito distantes disso, e há um risco enorme nesses procedimentos — diz Lanner. — Estamos começando a entender a função dos diferentes genes, mas existem muitas informações regulatórias no DNA que não conhecemos. Se mudarmos um gene para uma forma nova, não sabemos se isso poderá afetar ou regular outros genes.
Algo mais factível seria usar edição genética para tratar doenças hereditárias. A pesquisa chinesa com embriões não viáveis tentou, sem sucesso, modificar o gene responsável pela talassemia beta, que provoca desordem na produção de hemoglobina. Outro estudo, também na China e com embriões não saudáveis, tentou introduzir nos ovos um gene resistente à infecção por HIV. De 26 embriões, quatro foram modificados, mas nem todos os cromossomos carregaram a mutação.
— Corrigir uma doença que sabemos como é o gene normal pode ser mais factível, mas acho perigoso, porque a tecnologia não está madura — opina Lanner. — Mas é importante que a ferramenta seja explorada in vitro, para ver se é possível otimizar a tecnologia ou o surgimento de novas abordagens, que poderiam ajudar a tratar doenças.