Sérgio Henrique Pires Okano
Giovanna Giulia Milan Pellicciotta
Carolina Sales Vieira
Giordana Campos Braga
Introdução
A pessoa transgênera é o indivíduo cuja identidade de gênero não se relaciona ao sexo que lhe foi atribuído ao nascimento, independentemente de realização de procedimentos corporais de afirmação de gênero (1). Homens trans (HT) são indivíduos que possuem uma identidade de gênero masculina, mas foram designados como mulheres no nascimento; enquanto as mulheres trans (MT) são pessoas de identidade feminina que foram designadas homens ao nascimento.
Aproximadamente 0,7% da população brasileira em idade reprodutiva se identifica como trans, e 1,2% como não-binária (2). Apesar desses números, a população transgênera enfrenta diversas barreiras de acesso às redes de saúde e recebe pouca (ou nenhuma) orientação com relação ao planejamento reprodutivo (3).
Estudos demonstram que HT fazem pouco uso de métodos contraceptivos e desconhecem o risco de gravidez. Um estudo de coorte identificou que apenas 20% dos HT utilizavam contracepção e que mais da metade não recebeu orientações quanto ao uso de contracepção após o início da terapia hormonal de afirmação de gênero (THAG) (4). Uma pesquisa americana demonstrou que 32% das gestações em HT ocorrem sem planejamento, e que 24% ocorreram em vigência do uso da testosterona (5).
O uso da testosterona por HT e estrogênio por MT pode influenciar a produção de gametas, sobretudo em MT, o que pode ser um problema para as pessoas que desejam gestação após início dos tratamentos de afirmação de gênero. Apesar desse efeito, a THAG não deve ser considerada eficaz para contracepção.
Este boletim foi baseado no artigo “Contraceptive Counseling for the Transgender Patient Assigned Female at Birth” publicado na Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia em 2022 (6).
Avaliação da indicação de uso de contraceptivos em pessoas transgêneras.
A contracepção deve ser discutida com todas as pessoas que apresentam risco de gestações não planejadas (4,7–9). Para acessar essas informações é importante questionar, de maneira objetiva, sobre as práticas sexuais e as parcerias da pessoa em atendimento, focando sobretudo no risco de gravidez pelo sexo com penetração pênis-vagina (3).
A indicação de contracepção também deve levar em consideração os benefícios extra contraceptivos associados ao uso de hormônios como queixas de sangramento uterino anormal, dismenorreia, sintomas da síndrome de tensão pré-menstrual (TPM) e dor associada à ovulação (9). Essas indicações devem incluir também pacientes que não podem fazer uso da testosterona, como os pacientes com menos de 16 anos, considerada a idade mínima permitida para início da testosterona como THAG segundo a Resolução 2.265/19 do Conselho Federal de Medicina (10).
O Quadro 1 traz alguns exemplos de perguntas que podem ser feitas no consultório para acessar essas informações.
Quadro 1: Como abordar as práticas sexuais e necessidades do paciente?
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Como não existem guidelines com estudos primários específicos para a população transgênera, a prescrição de métodos contraceptivos deve seguir as mesmas diretrizes propostas pelo Center for Desease Control (CDC) e Organização Mundial de Saúde (OMS) para a contracepção em mulheres cis (11–13).
Em alguns protocolos, a associação da testosterona a um contraceptivo progestagênio isolado no início da terapêutica é recomendada a fim de reduzir possíveis padrões desfavoráveis de sangramento (5,14,15). Krempasky et. al (2020) identificaram que a redução ou cessação do sangramento menstrual ocorre principalmente em usuários de contraceptivos de progestagênio isolado e os de contraceptivos combinados usados de forma contínua (sem pausas).
Para as MT, oferecer a vasectomia e orientar uso de preservativo também são possibilidades de prevenir gravidezes não planejadas (14,17).
Avaliação das contraindicações e particularidades do uso dos métodos contraceptivos (hormonais e não hormonais)
Atualmente a prescrição de qualquer contraceptivo deve ser baseada nos critérios médicos de elegibilidade da Organização Mundial de Saúde (OMS). Isto porque estes critérios avaliam o uso de contraceptivos em diversas situações clínicas, mostrando quando são indicados e quando são contraindicados. Estas orientações são revistas periodicamente, sendo que a última revisão foi feita em 2014 e publicada em 2015. As orientações estão disponíveis gratuitamente no site da OMS: www.who.int/reproductivehealth/publications/family_planning/MEC-5/en/. É importante estar atento a estas orientações, uma vez que a prescrição de um contraceptivo pode afetar negativamente condições de saúde pré-existentes. A tabela 1 mostra as orientações para a prescrição dos métodos contraceptivos a depender da categoria nos critérios de elegibilidade. A categoria 4 é considerada contraindicação absoluta.
Tabela 1: Critérios de elegibilidade médica para os métodos contraceptivos segundo a Organização Mundial de Saúde
Categoria | Classificação | Julgamento Clínico |
1 | Não há restrição ao uso do método contraceptivo.
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Utilizar o método |
2 | As vantagens em utilizar-se o método geralmente superam os riscos, teóricos ou provados.
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Utilizar o método |
3 | Os riscos, comprovados ou teóricos, superam as vantagens do uso do método. | Não é recomendado uso do método, a menos que, métodos mais adequados não estejam disponíveis ou, não sejam aceitáveis.
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4 | Risco de saúde inaceitável caso o método anticoncepcional seja utilizado | Não utilizar o método (proscrito) |
Adaptada de WHO, 2015 (13).
Todos os contraceptivos hormonais são contraindicados na presença de gravidez e história pessoal de câncer de mama (em até 5 anos de tratamento). Nessas condições, o uso do dispositivo intrauterino (DIU) de cobre, métodos baseados na percepção da fertilidade, espermicidas, métodos de barreira e métodos cirúrgicos são opções contraceptivas aceitáveis (16,17).
Atualmente, não há estudos que demonstram um impacto do uso da testosterona sobre a contracepção, nem que a associação dessa medicação com a contracepção combinada aumente os riscos do desenvolvimento de tromboembolismo venoso (8,18). Desta forma, a avaliação da contraindicação ao uso dos contraceptivos deve se pautar nas contraindicações conhecidas para as mulheres cis.
Entretanto, a presença de estrogênio nos contraceptivos hormonais combinados, faz com que HT em uso da THAG com testosterona possam preferir o uso de métodos não hormonais ou de progestagênio isolado. Além da presença do estrogênio da contracepção combinada poder desencadear o aumento do tecido mamário, alguns pacientes podem enfrentar dificuldades no uso devido ao medo da medicação atrapalhar o desenvolvimento de caracteres masculinos secundário ao uso da THAG (8,9,18,19).
Pacientes transgêneros podem também optar pela contracepção definitiva. Em HT, a indicação da realização da laqueadura tubária pode ser uma alternativa, alguns pacientes podem optar pela salpingectomia; enquanto em MT, a indicação da vasectomia também deve ser discutida. A realização de contracepção definitiva no Brasil deve respeitar a idade mínima de 21 anos ou a presença de pelo menos dois filhos vivos (40). Apesar de não serem considerados métodos contraceptivos, procedimentos como a ooforectomia, histerectomia e orquiectomia resultarão na infertilidade para o paciente que optar pela sua realização.
Por fim, é importante lembrar que a discussão da contracepção de emergência pode ser uma necessidade no atendimento de pessoas transgêneras expostas a relações desprotegidas. O método de emergência escolhido deve ser utilizado num intervalo de até 120 horas da relação sexual desprotegida (31). Não existe qualquer contraindicação ao uso de contraceptivos de emergência por pessoas transgêneras, entretanto é importante considerar questões relacionadas à manipulação pélvica para inserção do DIU de cobre. Os dispositivos intrauterinos, além de muito eficazes para prevenção da gestação não planejada, têm a vantagem de serem utilizados como emergência e contracepção de longa ação.
Possíveis benefícios e desconfortos associados ao uso do contraceptivo
A escolha do método contraceptivo também deve levar em consideração condições associadas a possíveis desconfortos relacionados ao uso ou inserção/retirada do método (20–22). A exposição e a manipulação pélvica podem gerar desconforto físico, psicológico e/ou emocional em pacientes transgêneros (23,24). A tabela 2 resume os benefícios e desconfortos associados a cada classe de método contraceptivo em relação ao cuidado transgênero e a sua eficácia (calculada para mulheres cis).
Algumas medicações como a injeção trimestral (AMPD: acetato de medroxiprogesterona de depósito), implante subdérmico de etonogestrel e dispositivo intrauterino de levonorgestrel (DIU-LNG) apresentam sangramento não previsível, sendo que 80 a 90% das usuárias evoluem para sangramento favorável (sangrar um vez por mês ou menos) enquanto que 10 a 20% desenvolvem um sangramento desfavorável (sangrar mais de uma vez por mês ou apresentar sangramento prolongado) (25,26). O DIU-LNG, apesar de possuir alta eficácia contraceptiva e promover diminuição da frequência, da duração e do volume do sangramento uterino com o tempo de uso (27,28), bloqueia a ovulação em menos de 25% dos ciclos (29), promovendo, portanto, poucos benefícios relacionados à síndrome de TPM. Com relação à dismenorreia e o volume menstrual, todos os contraceptivos hormonais reduzem estas queixas.
HT podem apresentar resistência ao uso do estrogênio na contracepção (18,27). Em mulheres cis, o uso do etinilestradiol ou do valerato de estradiol aumenta a produção da proteína carreadora dos hormônios sexuais (SHBG), levando a redução da biodisponibilidade da testosterona; entretanto não existem estudos que avaliem esse efeito em pessoas trans, nem sobre outros os possíveis efeitos deletérios durante a transição hormonal (8,21). Alguns levantamentos relatam que o uso de estrogênio exógeno por essa população pode, ocasionalmente, causar aumento e desenvolvimento das glândulas mamárias (30).
O uso de contraceptivos combinados pode ser oferecido quando houver desejo ou benefício da associação desse hormônio para o paciente usuário da testosterona, como por exemplo, desejo de sangramento programado ou tratamento de acne (8,32,33). Os efeitos sobre o risco de desenvolvimento de tromboembolismo, em usuários de métodos combinados em associação à testosterona é desconhecido, portanto, é prudente oferecer inicialmente a prescrição de contraceptivos de progestagênios isolados aos usuários de testosterona (9,18,30).
O uso de pílulas orais também pode remeter ao corpo e cuidado feminino e resultar em maior dificuldade com o uso, sobretudo das composições que possuem estrogênio (30).
O AMPD afeta o metabolismo lipídico reduzindo todas as suas frações (13,37). Duas meta-análises evidenciaram que o uso de testosterona por HT, também reduz frações de HDL-colesterol (38,39). Apesar desse efeito colateral, os dados ainda são insuficientes para avaliar se tal modificação nos lípides desencadearia mais morte, infarto, AVC ou trombose venosa em HT (38). Por esse motivo, a associação da testosterona ao AMPD deve ser realizada com cautela em pacientes que apresentem redução significativa do HDL.
Tabela 2: Benefícios, características e possíveis desconfortos associados ao uso do método contraceptivo e rico de falha de cada método contraceptivo.
Método | Benefícios associados ao uso do método contraceptivo | Possíveis desconfortos e riscos associados ao uso do método contraceptivo | Risco de falha
(Usos típico e perfeito) |
Contraceptivo Oral Combinado |
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Típico: 9%
Perfeito: 0,3% |
Progestagênio oral isolado |
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Típico: 9%
Perfeito: 0,3% |
Adesivo |
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Típico: 9%
Perfeito: 0,3% |
Anel Vaginal |
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Típico: 9%
Perfeito: 0,3% |
Injeção Mensal (combinado) |
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Típico: 6%
Perfeito: 0,2% |
Injeção Trimestral |
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Típico: 6%
Perfeito: 0,2% |
DIU não-hormonal |
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Típico: 0,8%
Perfeito: 0,6% |
DIU-LNG |
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Típico = Perfeito = 0,2% |
Implante de Etonogestrel |
pélvico
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Típico = Perfeito = 0,05% |
Laqueadura tubária |
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Típico = Perfeito = 0,5% |
Vasectomia |
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Típico: 0,15%
Perfeito: 0,1% |
Preservativo |
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Típico: 18 a 21%
Perfeito: 2-5% |
Legenda: DIU: Dispositivo intrauterino. DIU-LNG: Dispositivo intrauterino de levonorgestrel. ISTs: Infecções Sexualmente Transmissíveis. THAG: Terapia Hormonal de Afirmação de Gênero. SUS: Sistema Único de Saúde.
Conclusão:
Tanto ginecologistas quanto médicos generalistas possuem dúvidas sobre as particularidades da prescrição contraceptiva para a população de HT. Como não existem guidelines com estudos primários específicos para a população transgênera, a prescrição de métodos contraceptivos deve seguir as mesmas diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a contracepção em mulheres cis. A avaliação da indicação de seu uso, particularidades relacionadas à inserção e remoção e os efeitos colaterais devem ser considerados nessa discussão. Apesar da amenorreia, o uso da T não garante eficácia contraceptiva.
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