Autores: Grazielle Viola Arronqui e Mariane Cristina Carlucci Molina Félix. Manual de boas práticas na gestão da doação de gametas e embriões.
Este documento tem como objetivo descrever as recomendações mais atuais para avaliação de potenciais doadores de gametas e embriões, bem como de seus receptores, apresentando informações sobre triagem e rastreamento básico. Este documento incorpora informações da RDC nº 771/2022 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que dispõe sobre as Boas Práticas em Células Germinativas, Tecidos Germinativos e Embriões Humanos, para uso terapêutico, e dá outras providências; da Resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que estabelece as normas para a reprodução assistida no Brasil; do guidance “Gamete and embryo donation”, documento desenvolvido pelo The Practice Committee of the American Society for Reproductive Medicine and the Practice Committee for the Society for Assisted Reproductive Technology em 2024; e do guidance “Good practice recommendations for information provision for those involved in reproductive donation”, documento desenvolvido pelo ESHRE Working Group on Reproductive Donation em 2022.
Descritores: Doação de óvulos/espermatozóides; Seleção do doador; Técnicas de reprodução assistida
Introdução
A reprodução assistida envolve um conjunto de técnicas médicas e laboratoriais que têm como objetivo auxiliar indivíduos na construção familiar. Essas práticas têm se tornado cada vez mais comuns devido a fatores como o adiamento da maternidade, problemas de infertilidade, novas configurações
familiares e avanços científicos que possibilitam o aumento das chances de sucesso nos tratamentos (1).
Dados do Sistema Nacional de Produção do Embriões (SisEmbrio) indicam que, em 2024, foram realizados cerca de 56.000 ciclos de fertilização in vitro (definido como estimulação ovariana e retirada de oócitos para reprodução assistida). Ao analisar os dados envolvendo doação de gametas e embriões, estima-se que 12,9% das inseminações intrauterinas (IIU) utilizaram sêmen de doador 258 de 1.999 procedimentos, enquanto 964 gestações clínicas foram possíveis através da ovorecepção e 1.125 embriões foram doados para uso terapêutico (2).
No Brasil, a doação de gametas e embriões é regulamentada pela RDC nº 771/2022 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que dispõe sobre as Boas Práticas em Células Germinativas, Tecidos Germinativos e Embriões Humanos, para uso terapêutico, e os requisitos técnico-sanitários mínimos com vistas à segurança e qualidade destes produtos, e pela Resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que estabelece as normas para a reprodução assistida no país (3)(4).
O objetivo deste documento é descrever as recomendações mais atuais para avaliação de potenciais doadores de gametas e embriões, bem como de seus receptores, apresentando informações sobre triagem e rastreamento básico exigidos pelas resoluções nacionais e incorporar as boas práticas listadas pelos guidances das sociedades internacionais ASRM e ESHRE (5)(6).
- Disposições gerais sobre o processo de doação e recepção (4)
Altruísmo e
solidariedade |
A doação não deve ter caráter lucrativo ou comercial. |
Garantia de
anonimato |
O sigilo sobre a identidade dos doadores deve ser mantido, porém, em situações especiais (motivação médica), informações sobre os doadores, podem ser fornecidas exclusivamente aos médicos, resguardando a identidade civil do doador. |
Doação entre familiares | Até 4º grau de um dos parceiros sem a ocorrência de consanguinidade.
Primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos. |
Em caso de
fiscalização |
Autoridades de vigilância sanitária podem ter acesso aos registros relacionados à doação, para fins de inspeção e investigação(3). |
Registros dos dados | Os registros com dados clínicos de caráter geral e características fenotípicas devem ser mantidos de forma permanente, de acordo com a legislação vigente. |
Limite de
doação por região de localização da unidade |
É permitido 2 nascimentos de crianças de sexos diferentes em uma área de 1 milhão de habitantes por doador. Exceto quando a mesma família receptora escolher o mesmo doador, permitindo assim o número de gestações desejadas. |
Impedimento de doações | Médicos, funcionários e demais integrantes da equipe multidisciplinar dos serviços não podem ser doadores nos programas. |
Seleção dos
doadores |
A responsabilidade é exclusiva dos usuários quando da utilização de banco de gametas ou embriões. |
Segurança da prole e
rastreabilidade |
Quando embriões forem formados por gametas de pacientes ou doadores distintos, a transferência embrionária deverá ser realizada com embriões da mesma origem. |
Relatório
médico |
Em prontuário, deve ser atestada a adequação da saúde física e mental de todos os envolvidos. |
- Disposições gerais sobre a triagem de doadores (3)
Questionário de triagem | Deve ser aplicado por profissional de nível superior, treinado e qualificado. |
Entrevista do doador | Deverá considerar condições físicas e mentais debilitantes, doenças graves e genéticas ou outras condições clínicas que contraindiquem a doação, conforme protocolos definidos pelo serviço. |
Orientação aos doadores | É importante informar o surgimento de qualquer sinal ou sintoma no período imediato após a doação, bem como aparecimento de doença transmissível (infecciosa ou não). Dessa forma o serviço pode gerenciar os riscos sanitários inerentes aos materiais biológicos. |
Avaliações
clínicas e laboratoriais adicionais |
A depender do histórico de viagens do doador ou residência, em regiões de alta incidência loco-regional de transmissão comunitária por agentes transmissíveis por células e tecidos germinativos. |
Inserção,
adequação ou modificação nos critérios de seleção de doadores |
A Anvisa poderá, em casos de emergência de saúde pública, surtos epidêmicos, avanços tecnológicos e estudos pertinentes, a fim de eliminar ou mitigar os riscos sanitários implicados. |
Laboratórios de triagem dos
doadores |
Devem ser qualificados pelo CRHA responsável pela coleta, sendo vedada a triagem laboratorial por meio de testes rápidos. |
- Doadores – Triagem e seleção
Doação de
espermatozóides(3)(4) |
Doação de óvulos(3)(4) | |
Idade | Entre 18 e 45 anos. | Entre 18 e 37 anos;
Exceções ao limite da idade podem ser aceitas nos casos de doação de oócitos previamente congelados e doação familiar, desde que a receptora seja devidamente esclarecida sobre os riscos que envolvem a prole. |
Doação | Anônimo ou familiar até 4º grau. | Anônimo ou familiar até 4º grau;
A doadora de óvulos ou embriões não pode ser a cedente temporária do útero. |
Doação
compartilhada |
* | É permitido o compartilhamento do material biológico e custos financeiros entre doadora e receptora;
A escolha da doadora, neste caso, é de responsabilidade do médico assistente; A doadora deve ter, dentro do possível, a maior semelhança fenotípica com a receptora, que deve dar sua anuência à escolha. |
Coleta de
sangue e urina |
Deve ocorrer na data da coleta da amostra de sêmen;
Caso seja realizada mais |
Deve ocorrer no máximo 30 dias antes da coleta dos oócitos. |
de uma coleta seminal, o exame deve ser datado da última coleta seminal. | ||
Repetição dos exames
sorológicos |
HIV, Hepatites B e C – nunca inferior a 180 dias; Sorologia simultânea com metodologias de detecção de ácido nucléico (NAT) não é necessária quarentena ou retestagem. | HIV, Hepatites B e C – nunca inferior a 180 dias;
Sorologia simultânea com metodologias de detecção de ácido nucléico (NAT) não é necessária quarentena ou retestagem. |
Sorologia
básica |
HIV 1 e 2: detecção de anticorpo contra o HIV ou detecção combinada do anticorpo contra o HIV + antígeno p24 do HIV; Hepatite B: HBsAg e Anti
HBc (IgG ou IgG + IgM); Hepatite C: HCV-Ab; Sífilis: teste para detecção do anticorpo anti-treponêmico ou não-treponêmico; HTLV I e II: teste para detecção de anticorpo anti-HTLV I/II; vírus Zika: teste para detecção de anticorpo IgG e IgM; “Neisseria gonorrhoeae”: detecção de ácido nucleico (NAT) em amostra de urina ou sêmen; “Chlamydia trachomatis”: detecção de ácido nucleico (NAT) em amostra de urina ou sêmen. |
Exames básicos: HIV 1 e 2: detecção de anticorpo contra o HIV ou detecção combinada do anticorpo contra o HIV + antígeno p24 do HIV; Hepatite B: HBsAg e Anti-HBc (IgG ou IgG + IgM); Hepatite C: HCV
Ab; Sífilis: teste para detecção do anticorpo anti-treponêmico ou não-treponêmico; Vírus Zika: teste para detecção de anticorpo IgG e IgM; “Neisseria gonorrhoeae”: detecção de ácido nucleico (NAT) em amostra de urina; “Chlamydia trachomatis”: detecção de ácido nucleico (NAT) em amostra de urina. |
Exames
genéticos |
Cariótipo; e Traços falciformes. | Cariótipo; e Traços falciformes. |
Exames
adicionais |
* | Óvulos frescos: Teste de detecção de ácido nucleico para HIV; Teste de detecção de ácido nucleico para HBV; Teste de detecção de ácido nucleico para HCV. |
- Situações especiais
Alterações em Sorologia(3) | |
Exclusão
definitiva do doador |
Alteração reagente ou positiva nos exames:
HIV 1 e 2, Hepatite B, Hepatite C e HTLV, testes cariótipo e traços falciformes. |
Exclusão
temporária do doador |
Alteração reagente ou positiva nos exames:
Sífilis, vírus Zika, “Neisseria gonorrhoeae” e “Chlamydia trachomatis”, habilitada doação apenas com resultados não reagentes ou negativos. |
Uso de gametas e embriões com alterações genéticas (3) | |
Excludentes de doação | Alterações de cariótipo e traços falciformes. |
Liberação
excepcional |
O uso terapêutico de células germinativas, tecidos germinativos e embriões humanos com alteração genética detectada por meio de testagem que identifique anormalidades, necessita de avaliação de risco genético aprovada pelo responsável médico do CRHA de origem da amostra;
Laudo médico relativo ao risco genético dos pacientes implicados, frente à alteração detectada; Assinatura de TCLE que trate das potenciais implicações referentes à alteração genética identificada na amostra; Laudo médico deve ser assinado por profissional médico que ofereceu orientação à paciente e forneceu evidências científicas da condição genética identificada sobre a prole, considerado o histórico genético familiar e o risco de a condição genética levar a debilidade mental ou física ou outras condições de anormalidades e de doenças. |
Termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE)(3) | |
Prazo | Antes da realização dos procedimentos de RHA, por escrito, e assinado tanto por doador e receptor, quanto por profissional de saúde designado, capacitado e treinado para tanto. |
Redação | Em conformidade com as necessidades de cada tipo de intervenção, com o indivíduo envolvido, e os procedimentos específicos a serem realizados. Deve conter linguagem clara e compreensível, da forma mais detalhada possível, além de necessariamente conter autorização para todos os procedimentos de RHA a serem realizados. |
Doadores | O documento deve conceder autorização para: coleta de óvulos, doação de gametas e/ou embriões para uso terapêutico; |
descarte, pelo CRHA, de amostras que não atendam aos critérios de armazenamento ou uso posterior; resultados de exames obrigatórios pela legislação sanitária vigente, bem como de outros testes determinados pelo CRHA. | |
Receptores | O documento deve conceder autorização para: transferência de embriões; compromisso, por parte da paciente receptora e de seu cônjuge, se houver, de manterem-se rastreáveis, para fins de verificação do cumprimento do disposto na Resolução do CFM nº 2.320, de 20 de setembro de 2022, que dispõe sobre Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida, e suas atualizações; coleta de sangue para realização dos testes obrigatórios pela legislação sanitária vigente, bem como de outros testes determinados pelo CRHA; recebimento de oócitos doados a fresco, se aplicável. |
Aconselhamento e avaliação psicológica (5)
Deve ser realizada por um profissional de saúde mental qualificado e habilitado, podendo ser no formato de entrevista e aplicação de teste padrão de triagem de transtornos mentais e comportamentais. |
|
Questionar | Histórico familiar, formação acadêmica, histórico de trabalho, estabilidade financeira, motivação para doar, estressores da vida atual e habilidades de enfrentamento, histórico reprodutiva difícil ou traumática, relações interpessoais, histórico sexual, histórico pessoal de problemas de saúde mental, uso atual ou anterior de medicação psicoativa, histórico jurídico, história de abuso ou negligência. |
Avaliar | O entendimento do doador sobre o processo, bem como identificar potenciais riscos emocionais e sociais, evidência de coerção (financeira ou emocional), risco de perder o anonimato, implicações dos tipos de famílias, gestão da informação do doador e como será divulgada, armazenada e protegida. |
Critérios de exclusão
para doadores de gametas |
Histórico pessoal ou de parente de primeiro grau com doença mental grave, presença de psicopatologia significativa, história familiar positiva de transtornos psiquiátricos, uso atual de medicamentos psicoativos, história de abuso emocional, sexual ou físico sem tratamento profissional, estresse excessivo, instabilidade de relacionamento, déficit cognitivo que impede de consentir com clareza. |
Conclusão
Além das diretrizes apresentadas que norteiam a doação e recepção de gametas, a prática diária nos lembra que estamos diante de histórias de vida muito singulares.
Frequentemente, recebemos pacientes fragilizados e marcados por trajetórias de tentativas, perdas e expectativas geradas durante o processo. Para esses pacientes, a recepção de gametas, pode representar a dualidade entre a dor de não conseguir gerar com os gametas próprios, ao mesmo tempo que representa a esperança da realização do sonho da construção familiar.
Os doadores devem ser igualmente acolhidos, pois podem buscar essa prática como parte do seu planejamento reprodutivo, seja pela criopreservação de gametas ou pelo desejo de constituir sua família. São mulheres, homens e casais que, ao doar, vivenciam uma experiência complexa que necessita de informação clara, suporte técnico, empatia e cuidado.
É fundamental que toda a equipe multidisciplinar envolvida nos programas de doação de gametas ou embriões esteja preparada, tecnicamente e emocionalmente para ofertar acolhimento, escuta ativa e suporte individualizado. O maior desafio profissional está em equilibrar normas e resoluções, de forma ética e com sensibilidade, garantindo que cada paciente, receptor ou doador, sejam respeitados em sua integridade, direitos e singularidade.
Referências
- World Health Organization. Infertility. 14 set. 2020. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/infertility. Acesso em: 14 ago. 2025.
- BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. SisEmbrio – Sistema Nacional de Produção de Embriões. Brasília: Ministério da Saúde, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br. Acesso em: 14 ago. 2025.
- BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 771, de 26 de dezembro de 2022. Estabelece regras para reprodução humana assistida. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br. Acesso em: 14 ago. 2025.
- CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.320, de 1º de setembro de 2022. Adota normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/arquivos/resolucoes/RESOLUCAO2320_
2022.pdf. Acesso em: 14 ago. 2025.
- The Practice Committee of the American Society for Reproductive Medicine and the Practice Committee for the Society for Assisted Reproductive Technology. Gamete and embryo donation guidance. Fertil Steril. 2024 Nov;122(5):799-813. doi: 10.1016/j.fertnstert.2024.06.004. Epub 2024 Jul 6. PMID: 38970576.
- ESHRE Working Group on Reproductive Donation; Kirkman-Brown J, Calhaz-Jorge C, Dancet EAF, Lundin K, Martins M, Tilleman K, Thorn P, Vermeulen N, Frith L. Good practice recommendations for information provision for those involved in reproductive donation†. Hum Reprod Open. 2022 Feb 16;2022(1):hoac001. doi: 10.1093/hropen/hoac001. PMID: 35178481; PMCID: PMC8847071.