Matheus Brum 1, Paula Andrea Navarro2,3
1Médico residente de Reprodução Assistida, Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto-USP
2Coordenadora do Comitê de Infertilidade da SBRH
3Professora Associada do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, Setor de Reprodução Humana
Este documento tem como objetivos revisar os dados mais recentes sobre mosaicismo embrionário e fornecer orientações baseadas em evidências quanto à possibilidade de transferência de embriões mosaicos (TEM), baseado nas publicações da American Society for Reproductive Medicine (2023) e da European Society of Human Reproduction and Embryology (2022).
RESUMO
– Resultados preliminares levaram a comunidade de medicina reprodutiva a uma aceitação gradual, mas crescente, da TEM como uma opção viável para os pacientes.
– Os resultados relatados na literatura sugerem que a TEM pode impactar o potencial reprodutivo. Taxas mais baixas de implantação e maiores de abortamento espontâneo em comparação com embriões euploides foram observadas em muitos estudos; esses resultados podem ser devidos, em parte, aos vieses das populações estudadas.
– A aneuploidia fetal relacionada ao resultado de mosaico no PGT-A é provavelmente muito baixa (<1%).
– Embora graus de mosaico possam ser úteis para avaliar o potencial reprodutivo e priorizar a TEM, não está claro se eles podem ser usadas para prever riscos pré e pós-natais com precisão.
- Visão Geral
Na genética médica, o mosaicismo é definido como a presença de mais de uma linhagem celular cromossomicamente distinta em um indivíduo. A taxa de resultados mosaicos pela biópsia de trofectoderma varia entre 2% e > 20%, dependendo de múltiplos fatores (tabela 1). Já se tem documentada a transferência de mais de 2.700 embriões mosaicos.
O diagnóstico de mosaicismo cromossômico em uma biópsia de trofectoderma é inferido da análise do DNA extraído e amplificado de um grupo de células. Com o sequenciamento de próxima geração (NGS), método mais comum de análise em PGT-A, um algoritmo de bioinformática é utilizado para medir a quantidade de DNA representada por cada cromossomo em comparação com uma referência normal. Um número de cópias intermediário entre 2 e 3 (faixas de dissomia e trissomia) pode ser interpretado como trissomia em mosaico, enquanto um número de cópias intermediário entre 1 e 2 (faixas de monossomia e dissomia) pode ser interpretado como monossomia em mosaico. Os níveis de corte mais adotados entre os centros de reprodução humana são: ≤ 20% de células anormais para designar um embrião euploide; entre 20 e 80% para um embrião mosaico; e ≥ 80% para um embrião aneuploide. Dentre os mosaicos, um corte de 50% pode ser usado para discriminar entre mosaicismo baixo e alto.
Além do mosaicismo verdadeiro, há vários outros contribuidores e explicações propostos para os resultados do número de cópias intermediário, incluindo variação estatística (artefato de teste e ”ruído”), viés de amplificação de DNA, contaminação, estado mitótico, variação na técnica de biópsia de embrião e condições de laboratório de embriologia. Com isso, achados genéticos consistentes com mosaicismo devem ser designados como “sugestivo de mosaicismo”.
Uma nova biópsia de embriões supostamente mosaicos para fins de confirmação não é recomendada, pois não há evidências de que isso tenha valor diagnóstico e pode ter um possível impacto negativo no desenvolvimento embrionário e na implantação.
- Potencial reprodutivo de embriões mosaicos
Estudos iniciais evidenciaram que a TEM está associada à redução da implantação embrionária e à gravidez sustentada, bem como ao aumento de abortamento espontâneo, em comparação com a transferência de embriões euploides. Esses achados foram observados no maior estudo de TEM realizado até o momento, o qual foi publicado em 2021 e relatou retrospectivamente os resultados associados a 1.000 embriões mosaicos que foram testados por ensaios PGT-A semelhantes e transferidos, sendo comparados os resultados aos de embriões euploides. Uma limitação dos estudos de resultados retrospectivos é que os embriões com resultados mosaicos são normalmente transferidos apenas quando não há embriões euploides disponíveis. Além disso, dada a sobreposição conhecida entre intervalos de número de cópias em mosaico e aneuploides, é provável que dentre os embriões representados como mosaicos existam alguns embriões aneuploides.
Posteriormente, um estudo prospectivo foi conduzido no qual os embriões foram classificados como “euploides” quando o número de cópias foi determinado como estando entre 1,5 e 2,5 (ou seja, até 50% de mosaicismo). Após os resultados da transferência serem conhecidos, os pesquisadores revelaram o grau de mosaicismo dos embriões e não encontraram nenhuma diferença nas taxas de gravidez em andamento ou abortamento espontâneo ao se comparar embriões com mosaicismo baixo-intermediário (> 20 e < 50%) com embriões euploides ”verdadeiros” (< 20%). Os pesquisadores, portanto, concluíram que níveis de mosaicismo abaixo de 50% não impactam o desenvolvimento embrionário inicial ao usar seu ensaio PGT-A específico em uma população não selecionada.
Com isso, dadas as diferentes descobertas entre os estudos de resultados de TEM até o momento, mais dados são necessários para esclarecer se certos achados de mosaico são clinicamente relevantes para o potencial reprodutivo de um embrião.
- Resultados pré-natais, neonatais e pediátricos de embriões mosaicos
Na população em geral, o mosaicismo identificado em uma gravidez ou neonato está associado a um risco aumentado de um resultado adverso e, portanto, pode ser motivo de preocupação. Em contraste, até o momento, o mosaicismo identificado no embrião pré-implantação não foi definitivamente associado a um risco significativamente aumentado de um resultado fetal ou neonatal adverso. Uma revisão de 25 estudos sobre TEM publicada em 2021 evidenciou que < 1% de 2.759 embriões mosaicos transferidos resultaram em gravidez em andamento com feto aneuploide relacionado ao resultado do PGT-A original.
A potencial ocorrência de dissomia uniparental com fenótipo anormal após TEM foi descrita em um único relato de caso. A prevalência estimada é de 1 em 2.000 a 5.000 nascimentos; devido à sua raridade geral e à não realização rotineira do teste diagnóstico como parte do cuidado pré-natal, não se sabe se o risco de dissomia uniparental clinicamente significativa aumenta após TEM.
Uma preocupação teórica sobre o mosaicismo placentário confinado resultando em restrição do crescimento fetal ou outras complicações obstétricas após TEM foi levantada. No entanto, um estudo de caso-controle para avaliar o peso ao nascer e a duração da gestação de 324 recém-nascidos (162 embriões mosaicos e 162 embriões euploides) foi conduzido em 2020, e nenhuma diferença significativa foi observada. Devido à ausência de dados placentários, o aumento da vigilância da restrição do crescimento fetal após TEM pode não ser justificado.
Até o momento, os estudos com TEM se concentraram em resultados pré-natais e neonatais; nenhum estudo longitudinal foi realizado para avaliar resultados de longo prazo além do período neonatal. Como o PGT-A só pode avaliar o estado de aneuploidia, que é associado principalmente à viabilidade de um embrião, as evidências atuais não apoiam seu uso para prever problemas de saúde de longo prazo além daqueles relacionados às aneuploidias.
- Avaliação de risco e classificação de embriões com resultados em mosaico
A influência de fatores relacionados ao mosaicismo em resultados clínicos tem sido inconsistente, e uma abordagem universalmente aplicável e baseada em evidências não foi desenvolvida. Ao selecionar embriões mosaicos para transferência, o resultado do PGT-A deve ser coavaliado com a morfologia do embrião. Fatores que podem ser usados na avaliação e comparação de resultados e riscos de TEM estão resumidos na Tabela 2. Dados adicionais são necessários para determinar se essas categorias podem ser aplicadas de forma confiável à tomada de decisão clínica.
- Teste pré-natal após TEM
Atualmente, há uma falta de dados para informar recomendações baseadas em evidências para testes pré-natais após TEM. Dado que os procedimentos de diagnóstico pré-natal introduzem um risco pequeno, mas real, de perda da gravidez e complicações, e cada análise adicional solicitada aumenta o custo e a chance de resultados incertos, permanecem incertos se esses riscos são superados pelos benefícios de obter mais clareza sobre a gravidez. O aconselhamento genético é fortemente recomendado para qualquer paciente grávida após a transferência de um embrião com resultado em mosaico e deve incluir uma discussão sobre os riscos, benefícios e limitações das opções de teste pré-natal.
O American College of Obstetricians and Gynecologists recomenda que o diagnóstico pré-natal seja oferecido a todas as gestantes, incluindo gestações concebidas por fertilização in vitro com PGT-A, independentemente do risco estatístico de aneuploidia fetal. O American College of Medical Genetics and Genomics recomenda o teste pré-natal após a TEM envolvendo certos cromossomos.
– Rastreio pré-natal: Triagem sérica materna (bioquímica); Ultrassonografia, incluindo translucência nucal e imagens de anatomia fetal; DNA fetal livre de células / teste pré-natal não-invasivo (NIPT).
– Diagnóstico pré-natal: Amostra de vilo corial (teste placentário); Amniocentese (teste fetal).
- Desenvolvimento de políticas clínicas e aconselhamento genético
Os serviços de reprodução assistida devem desenvolver suas próprias políticas internas abordando a transferência, armazenamento e disposição de embriões mosaicos, incluindo:
- Aconselhamento genético
- Termos de consentimento
- Períodos de espera (por exemplo, no caso de um embrião preferido não sobreviver ao aquecimento no dia da transferência planejada)
- Se certos tipos de embriões em mosaico não podem ser transferidos
- Permissão para múltiplas transferências (por exemplo, múltiplos embriões mosaico, mosaico com um embrião euploide e mosaico com um embrião não testado)
- Uso de embriões mosaico antes de embriões euploides ou não testados
- Transporte de embriões mosaico para outra clínica ou unidade de armazenamento
Essas políticas devem ser amplamente compartilhadas com a equipe e os pacientes antes de realizar o PGT-A e em outros pontos relevantes durante o tratamento. Antes de realizar um teste genético, os pacientes devem ser informados sobre os riscos, benefícios e limitações da tecnologia usada e as implicações dos resultados.
Uma variedade de circunstâncias pode levar um paciente a considerar a transferência de um embrião mosaico. Esses pacientes devem receber aconselhamento genético, incluindo os seguintes pontos:
- Existem várias explicações possíveis para os resultados de mosaicismo no PGT-A.
- Não há nenhum método baseado em evidências para prever o risco de um resultado adverso ou classificar embriões mosaicos para transferência.
- Estudos sugerem que determinados embriões mosaicos podem ter taxa de implantação reduzida e maior risco de aborto espontâneo em comparação com embriões euploides.
- Os dados sobre gravidez e parto são amplamente tranquilizadores (< 1% de aneuploidia foi confirmado no feto ou no recém-nascido).
- Quando a aneuploidia fetal é confirmada no pré-natal, pode haver um risco significativo de resultados adversos; no entanto, a magnitude do risco pode não ser clara.
- A consulta com um profissional de saúde mental pode beneficiar os pacientes na tomada de decisões sobre TEM.
CONCLUSÕES
– As clínicas devem ter uma política em vigor sobre o registro e o gerenciamento de resultados de PGT-A em mosaico. A política deve ser conhecida pela equipe e compartilhada com os pacientes antes do teste de PGT-A.
– Os médicos devem entender a prevalência e a estrutura de notificação (incluindo as implicações do ”mascaramento”) dos resultados do PGT-A em mosaico emitidos por seu laboratório de referência.
– Pacientes que consideram a transferência de embriões com resultados em mosaico devem realizar uma consulta de aconselhamento genético.
– Aconselhamento genético e testes pré-natais devem ser oferecidos às pacientes que conceberem após o TEM, de acordo com as diretrizes do American College of Obstetricians and Gynecologists e American College of Medical Genetics and Genomics.
– O encaminhamento do neonato a um geneticista é recomendado em caso de fenótipo ou de desenvolvimento anormal.
– A equipe médica e os laboratórios de PGT são incentivados a rastrear e publicar resultados pré-natais, perinatais e pediátricos após a transferência de embriões com resultados de PGT-A em mosaico para melhorar o aconselhamento ao paciente.
Tabela 1. Fatores que influenciam a interpretação e o registro dos resultados de mosaico.
Fator | Exemplo |
Tecnologia |
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Interpretação dos resultados |
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Protocolo de relatórios |
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Fatores clínicos e embriológicos |
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Nota: Goldstein. Practice Committees of the American Society for Reproductive Medicine and the Genetic Counselors Professional Group. Mosaic results. Fertil Steril 2023.
Tabela 2. Fatores potenciais para avaliar os resultados e riscos do TEM
Risco | Considerações |
Porcentagem de mosaicismo |
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Cromossomos envolvidos |
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Monossomia vs. Trissomia |
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Cromossomo completo
vs. parcial (segmentar) |
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Nota: Goldstein. Practice Committees of the American Society for Reproductive Medicine and the Genetic Counselors Professional Group. Mosaic results. Fertil Steril 2023.
Referências
- ESHRE Working Group on Chromosomal Mosaicism; De Rycke M, Capalbo A, Coonen E, Coticchio G, Fiorentino F, Goossens V, et al. ESHRE survey results and good practice recommendations on managing chromosomal mosaicism. Hum Reprod Open. 2022;2022(4):hoac044. doi: 10.1093/hropen/hoac044. eCollection 2022.
- Practice Committees of the American Society for Reproductive Medicine and the Genetic Counseling Professional Group. Clinical management of mosaic results from preimplantation genetic testing for aneuploidy of blastocysts: a committee opinion. Fertil Steril. 2023;120(5):973-982. doi: 10.1016/j.fertnstert.2023.08.969.