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Comitê: Psicologia

Doação de gametas entre parentes

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Autoras: Débora Farinati, Helena Loureiro Montagnini, Juliana Roberto dos Santos, Lia Mara Dornelles e Luciana Leis.

Comitê de Psicologia SBRH: Lia Mara Dornelles, Valéria Teixeira, Arielle Nascimento, Cássia Avelar, Débora Farinati, Flávia Giacon, Helena Montagnini, Helena Prado, Juliana Roberto dos Santos, Kátia Straube, Luciana Leis, Rose Marie Melamed, Simone Perelson e Vânia Dossi.

 

A sociedade pós-moderna é testemunha e protagonista das profundas descobertas e transformações que têm ocorrido em diversos campos, dentre eles na família. Na pluralidade das atuais configurações familiares, encontra-se aquela formada pela doação de gametas e embriões.

Até o início de 2021, essas doações no Brasil só eram permitidas mediante anonimato, ou seja, nem o(a) doador(a) nem o(a) receptor(a) poderiam ter acesso à identidade um(a) do(a) outro(a). No entanto, no dia 27 de maio desse mesmo ano foi publicada a Resolução nº 2.294 do Conselho Federal de Medicina (CFM)1 autorizando esse gesto entre parentes até quarto grau, desde que não incorra consanguinidade. 

Essa alteração se deu devido ao número crescente de pedidos feitos ao Judiciário solicitando a utilização de gametas de familiares para a realização de tratamentos de reprodução assistida. Tais demandas foram atendidas com base na Lei no 14.443, de 2 de setembro de 2022, do Direito Fundamental ao Planejamento Familiar2.

A doação de gametas entre familiares pode acontecer em duas situações: o familiar, ao saber da dificuldade de gravidez do(s) receptor(es), se propõe voluntariamente a ajudá-lo(s); ou devido à solicitação do(s) receptor(es) ao doador(a) para que doe seu gameta a fim de que ele(s)/ela(s) possa(m) ter um filho2.

Ao suscitar dilemas éticos e morais e trazer implicações psíquicas ainda desconhecidas, essa técnica traz desafios às famílias, demandando maior compreensão. Por ser um arranjo recente no Brasil, utilizaremos dados de estudos internacionais como pontos importantes para nossa reflexão. 

  Uma preocupação presente nas doações de gametas entre familiares é a autonomia dos doadores que se deparam com a infertilidade de um parente que necessita de gametas doados para ter um filho. Alguns estudos destacam que muitos casais preferem utilizar gametas oriundos de familiares para manter a linhagem genética3. Entretanto, há que se considerar sempre a autonomia de receptores e doadores3,4, em especial entre diferentes gerações, na qual o risco de coerção é maior4. Outros fatores, como idade, maturidade, dependência financeira dos receptores, distância física e emocional dos envolvidos e aspectos da dinâmica familiar, também podem influenciar a autonomia dos doadores. 

A redução do tempo e dos gastos financeiros com os tratamentos também foi apontada como motivação para a doação de gametas entre familiares4. Podemos pensar que as pessoas que se dispõem voluntariamente a esse gesto ou as que aceitam essas propostas não o fazem sem razão, senão porque, de alguma forma, são tocadas por esses pedidos ou oportunidades de satisfação de desejos (quer de forma consciente ou inconsciente)2

Em um estudo qualitativo realizado com mulheres que receberam óvulos de suas irmãs, verificou-se que um dos aspectos referidos como importante para tal escolha foi a manutenção da semelhança familiar. No entanto, uma delas referiu que foi doloroso ouvir um comentário sobre a semelhança física existente entre seu filho e a tia que doou os óvulos. Isso a fez lembrar da impossibilidade de ter um filho com seus óvulos, além de ressaltar a existência de tal conexão entre a criança e sua irmã. Inicialmente, ela valorizou a preservação da genética familiar, mas desde que o filho nasceu tem encontrado dificuldades em lidar com a semelhança física existente entre eles5.

No mesmo estudo, algumas mulheres questionaram suas identidades como mães, expressaram dúvidas quanto às suas habilidades para exercer a função materna e se possuíam o “instinto materno”. Indagaram, ainda, se seria diferente caso os filhos tivessem a sua genética5.

Esses dados sinalizam algumas repercussões da doação entre parentes. Ressaltamos a importância de os receptores de gametas lidarem com a infertilidade, realizando o trabalho de luto pela impossibilidade de utilizar seus próprios gametas para gerar o filho, necessitando recorrer a um familiar. Também é fundamental que os doadores realizem o luto de uma parte de si doada ao outro2.

Marshall destaca a necessidade de se discutirem com todos os envolvidos na doação e recepção de gametas entre parentes os potenciais riscos3. Mesmo que especulativos, estes não devem ser excluídos e minimizados, e os benefícios para os receptores não devem ser considerados o critério mais importante para a tomada de decisão. 

 

Recomendações

 

Considerando a complexidade emocional presente na doação de gametas entre parentes, ressaltamos a importância do atendimento psicológico a todos os envolvidos nesse projeto parental antes de iniciarem os procedimentos médicos. 

Na escuta psicológica dos(as) doadores(as), destacamos a relevância de se refletir sobre as motivações para a doação e as possíveis consequências ou desfechos familiares decorrentes dessa doação, uma vez que frequentemente é o gesto de altruísmo que ganha maior dimensão na entrevista. 

Uma das possíveis formas de atuação do psicólogo/psicanalista nesse contexto é auxiliar as pessoas a pensarem, a partir da nossa escuta, se devem ou não seguir em frente com a doação de gametas. É viável, ainda, revelarmos possíveis motivações inconscientes que nos pareçam estar por trás dessa atitude2

O trabalho junto à ferida narcísica do(a) receptor(a) de gameta – pelo fato de não ter conseguido gerar com seu material e ter precisado de um outro – se faz igualmente necessário. Somente a partir da aceitação dessa falta, de se reconhecer incompleto, será possível aceitar o que vem do outro, colocando a gratidão no lugar da dívida e possibilitando que o doador se aproprie do seu gesto e responsabilidade pela doação do material2

Outro aspecto importante a ser abordado com todos os envolvidos durante as entrevistas psicológicas é a intenção de contar ou não para a criança sobre sua origem. Por vezes, os doadores consideram que essa decisão deva ser do casal receptor, como se ela não tivesse qualquer repercussão em seu núcleo familiar e nas relações estabelecidas com os receptores e a futura criança. 

Observa-se uma tendência mundial dos profissionais da área de saúde mental em considerar a importância de contar para o filho sobre a origem genética nos casos de recepção de gametas e embriões. Esse parecer é pautado por dois aspectos. Um deles se refere ao direito da criança em saber sua origem, tido como fundamental para a construção da própria identidade; já o outro considera os efeitos prejudiciais do segredo nas relações familiares, pois interfere na comunicação entre seus membros e incide na confiança, aspecto central dessa relação.

Na doação entre parentes, o(a) doador(a) fará parte do ambiente e do relacionamento familiar da criança, e algumas pessoas da família saberão da recepção e doação. Segundo Imber-Black, “quando os relacionamentos se encontram atrelados ao segredo, todo o estilo de comunicação de uma família pode tornar-se marcado pelo fato de manter o segredo em áreas totalmente alheias ao segredo original”6.

Além disso, trata-se de uma situação que mobiliza sentimentos intensos que comporão a história familiar e dificilmente serão disfarçados, ainda que transformados pelas compreensões de cada um. É fundamental que essa história possa estar elaborada para que seja possível contá-la sem despertar vergonha, sofrimento ou quaisquer outros sentimentos habitualmente relacionados com assuntos tidos como proibidos nas famílias.

 

Referências

 

  1. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.294, de 2 de setembro de 2021. [Internet]. 2021 [citado em 10 nov. 2022]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2021/2294_2021.pdf

 

  1. Farinati D, Leis L. Doação e recepção entre parentes. In: Leis L, Sá PG, organizadores. Psicologia em infertilidade e reprodução assistida: da teoria à prática. São Paulo: Editora dos Editores; 2023. p. 90-102.

 

  1. Marshall LA. Intergenerational gamete donation: ethical and societal implications. Am J Obstet Gynecol. 1998;178(6):1171-6. doi: https://doi.org/10.1016/s0002-9378(98)70319-9

 

  1. Jadva V, Casey P, Readings J, Blake L, Golombok S. A longitudinal study of recipients’ views and experiences of intra-family egg donation. Hum Reprod. 2011;26(10):2777-82. doi: https://doi.org/10.1093/humrep/der252

 

  1. Wyverkens E, Van Parys H, Provoost V, Pennings G, De Sutter P, Buysse A. Sister-to-sister oocyte donation: couples’ experiences with regard to genetic ties. J Reprod Infant Psychol. 2016;34(3):314-23. doi: https://doi.org/10.1080/02646838.2016.1167863

 

  1. Imber-Black E. Segredos na família e na terapia familiar: uma visão geral. In: Imber-Black E, editor. Os segredos na família e na terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994. p. 15-39.

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