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Comitê: Psicologia

Enquanto a cegonha não vem: ressonâncias da infertilidade no vínculo conjugal 

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Lia Mara Netto Dornelles

 

Ao longo das diferentes etapas da vida conjugal, os casais se deparam com situações inusitadas e a exigência de um constante investimento psíquico para que o amor sobreviva às intempéries do cotidiano. Badiou (2013) considera o amor uma confiança depositada no acaso, um acontecimento, uma proposta existencial de construção a partir da diferença, da alteridade. É um projeto a dois, que se propõe a desdobrar o mundo pelo prisma da nossa diferença e se refere antes de mais nada, a um Dois.

  Componente fundamental do vínculo conjugal, o amor nunca é aquele que foi idealizado – a não ser na fase inicial, a do encantamento, um período ilusório, descontinuado logo a seguir. Severo (2010) destaca que nesse momento fundante, o repertório do casal é seleto, os corpos se entrelaçam e as almas se fundem. É uma experiência inédita, que visa anular o inacessível do outro, uma espécie de cortina de fumaça que impede ver com clareza o que se apresenta.

Ao contrário, o amor é real, com sujeitos com histórias peculiares, recheadas de amores antigos, lutos, dissabores, conquistas e fracassos, esperança e desesperança. Viver junto demanda um trabalho vincular, pois a cotidianidade não mais sustenta o “glamour” do enamoramento, a fascinação pelo borramento das diferenças e a tentativa de unidade indissolúvel. E é na subjetividade produzida nesse “entre”, que o vínculo conjugal se constrói. Não há amor sem vínculo e não há vínculo sem trabalho para construí-lo. 

Cada sujeito do vínculo é singular e juntos constroem uma outra singularidade, exclusiva desse vínculo, que é fruto de um trabalho – o de fazer com um outro, respeitando a sua alteridade. Para ser sujeito de um vínculo é indispensável a acolhida ao outro, na sua diferença e semelhança, oferecendo-lhe hospitalidade. São gestos cambiáveis, que demandam do sujeito ser anfitrião e convidado. Como diz Moscona (2007), o vínculo relaciona-se ao efeito dos encontros e desencontros com o parceiro e para que se sustente, é imprescindível um ir fazendo, um ir sendo e um ir vivendo.

Quando ter um filho faz parte de um projeto compartilhado do casal, planos e sonhos são erguidos. Entretanto, se esse filho demora a chegar, se o casal busca ajuda médica e recebe o diagnóstico de infertilidade, o projeto de família fica em suspenso. Mann (2014) destaca que ao afetar a capacidade de criação, a infertilidade abala a imagem de si próprio, de quem é e de quem imagina que se tornaria no futuro. Além disso, provoca uma fissura no sentimento de continuidade e de pertencimento do sujeito a uma linhagem, constituindo-se numa ferida narcísica, que provoca lutos ancorados no próprio corpo.  

Nesse momento, sonhos e projetos futuros de antes são substituídos por raiva, indignação, medo, insegurança, tristeza, dúvidas, frustração, desesperança e sentimento de perda do controle de seus corpos. Inicia-se então, o tratamento, um percurso sem garantias de sucesso, mas com sofrimento intenso, que põe à prova a estrutura vincular do casal. Forma-se um terreno fértil para acusações, cobranças, desencontros, intolerância às diferenças, podendo levar a um estranhamento e desconhecimento mútuos, com implicações nas instâncias intrassubjetiva e intersubjetiva.  

Há algo novo que se inseriu na vida do par amoroso, que requer um trabalho psíquico contínuo para dar sustentação ao vínculo conjugal e, talvez, um redirecionamento de seus projetos. Ambos podem encontrar nesse momento uma oportunidade de crescimento como sujeitos singulares e como casal conjugal. Aqui recorro a Berenstein (2008) quando destaca que um sujeito se torna um outro a partir do vínculo com esse outro e que nesse arranjo, nenhum dos sujeitos é centro de si mesmo, nem da relação. 

A partir do novo que se apresenta no “entre”, naquilo que é produzido no vínculo amoroso, em que sucessos e fracassos, dor e amor são compartilhados, outras possibilidades de enfrentamento podem ser encontradas. Ressalto aqui, a relevância de um apoio psicológico, com uma escuta qualificada, que seja facilitadora de reflexão e acolhimento e possa dar abrigo ao estranho do outro e ao novo que vem de fora – nem sempre bem-vindo. Diz o mito da cegonha, que quando os casais queriam ter um bebê, colocavam guloseimas no parapeito da janela, sinalizando o seu desejo. Quando saiam para caçar nos lagos e pântanos, as cegonhas encontravam as almas das crianças por nascer e transportavam no bico os bebês nascidos até esses casais. Hoje, pode-se recorrer a diversas tecno-cegonhas, embora ainda sem garantia de que esse desejo será atendido. É possível pensar na doçura das guloseimas como o afeto produzido no vínculo entre o casal. O diagnóstico de infertilidade e os tratamentos de reprodução assistida são acontecimentos amargos e, por vezes, até mesmo cáusticos, capazes de corroer a vida a dois. Tais guloseimas, frequentemente associadas ao infantil, ao lúdico, ao prazer, são essenciais para adoçar e neutralizar as amarguras e angústias vividas pelo casal, ajudando-os nesse árduo percurso. 

 

Referências

Badiou, A. & Truong, N. (2013). Elogio ao amor. São Paulo: Martins Fontes.

Berenstein,I.(2008). Del ser al hacer – Curso sobre vincularidad. Buenos Aires:Paidós.

Mann, M. (2014). Psychoanalytic aspects of assisted reproductive technology. Londres:Karnac.

Moscona, S. L. (2007). Quiero saber la vedad! Quiero? In  Sara Lydinia Moscona (org.). Infidelidades en la pareja. Amor, fantasmas, verdades, secreto (pp. 18-41). Buenos Aires: Lugar Editorial.

Severo, A. (2010). Encontros & Desencontros- a complexidade da vida a dois. São Paulo: Casa do Psicólogo.